Sobre Nostradamus e o fim do mundo
A Tia Benedita achava que Nostradamus era um intrujão. A senhora não tinha, evidentemente, lido as 6338 previsões do astrólogo francês – em primeiro lugar porque não tinha paciência para sistemas complexos ou presságios de almanaque; em segundo lugar, porque acreditava que Nostradamus estava no Índex e não valia a pena reavaliar paranóias estrangeiras. Mesmo sobre o Bandarra, a quem uma vez se referiu como "o trapaceiro", a matriarca dos Homem era severa e céptica – se bem que o achasse conveniente por motivos políticos, revelando ter aprendido bem a lição dos Homem de várias gerações, que souberam (com rara sabedoria) distinguir a finalidade da substância. Problemas metafísicos que nunca entraram nos corredores do casarão de Ponte de Lima, onde a única presença do Além era o retrato do senhor Dom Miguel, estacionado para provar que a família tinha memória e conhecia a gratidão e a honra.
A falar verdade, a Tia Benedita acreditava que o fim do mundo já tinha acontecido, não como um apocalipse (um arcaísmo) mas como um conjunto de sinais, entre os quais se juntavam o dr. Afonso Costa, o samba, o ié-ié, as bainhas das saias de Mary Quant e a Concessão de Évora-Monte. O Juízo Final viria a caminho, mas já anunciado pelas torpezas que se sabe. Diante disso, ela reunia uma colecção de heróis, aventureiros, ascetas e até bandoleiros que lutavam contra a inevitabilidade da desgraça, entre os quais se contava tanto o seu avô materno como José Joaquim de Sousa Reis, o Remexido. A família tolerava-a com bondade e paciência, mesmo com ternura, poupando-se a explicar-lhe que a Tabela Periódica não tinha sido obra da Maçonaria ou que o príncipe proscrito nunca esteve em Braga depois de ter partido – para sempre – na direcção de Génova.
Estas excentricidades não a afastavam das realidades terrenas, que ela considerava com uma certa magnanimidade, uma vez que o mundo tinha terminado. Pelo menos o seu mundo. Às vezes imagino como seria esse mundo – e não encontro sinais dele senão em parágrafos de Camilo ou de D. Agustina. A Tia Benedita era uma espécie de Ana de Cales, a sibila severa e obscura de ‘Os Meninos de Oiro’, defendendo a sua tribo do adultério, da pobreza e da infelicidade que trazem as "coisas modernas". Hoje em dia seria uma luta de vida ou morte, boa para as províncias de há trinta ou quarenta anos, quando não se comentavam os divórcios nem se achavam milagres os triunfos da medicina. Vendo bem, ainda hoje refaço à mão as contas da calculadora usada por Dona Elaine – a governanta do eremitério de Moledo – para conferir as compras do mês. Um conservador é céptico até ao fim.
in Domingo - Correio da Manhã - 24 Janeiro 2010
A falar verdade, a Tia Benedita acreditava que o fim do mundo já tinha acontecido, não como um apocalipse (um arcaísmo) mas como um conjunto de sinais, entre os quais se juntavam o dr. Afonso Costa, o samba, o ié-ié, as bainhas das saias de Mary Quant e a Concessão de Évora-Monte. O Juízo Final viria a caminho, mas já anunciado pelas torpezas que se sabe. Diante disso, ela reunia uma colecção de heróis, aventureiros, ascetas e até bandoleiros que lutavam contra a inevitabilidade da desgraça, entre os quais se contava tanto o seu avô materno como José Joaquim de Sousa Reis, o Remexido. A família tolerava-a com bondade e paciência, mesmo com ternura, poupando-se a explicar-lhe que a Tabela Periódica não tinha sido obra da Maçonaria ou que o príncipe proscrito nunca esteve em Braga depois de ter partido – para sempre – na direcção de Génova.
Estas excentricidades não a afastavam das realidades terrenas, que ela considerava com uma certa magnanimidade, uma vez que o mundo tinha terminado. Pelo menos o seu mundo. Às vezes imagino como seria esse mundo – e não encontro sinais dele senão em parágrafos de Camilo ou de D. Agustina. A Tia Benedita era uma espécie de Ana de Cales, a sibila severa e obscura de ‘Os Meninos de Oiro’, defendendo a sua tribo do adultério, da pobreza e da infelicidade que trazem as "coisas modernas". Hoje em dia seria uma luta de vida ou morte, boa para as províncias de há trinta ou quarenta anos, quando não se comentavam os divórcios nem se achavam milagres os triunfos da medicina. Vendo bem, ainda hoje refaço à mão as contas da calculadora usada por Dona Elaine – a governanta do eremitério de Moledo – para conferir as compras do mês. Um conservador é céptico até ao fim.
in Domingo - Correio da Manhã - 24 Janeiro 2010
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