A ortografia pátria e os poliglotas da casa (2)
O que assusta mais gravemente na mudança ortográfica não são as alterações propriamente ditas, que eu deixo para o dr. Graça Moura e para os fonólogos e tipógrafos – mas a euforia pela mudança, propriamente dita. Esse é o sinal dramático das coisas que nos esperam: um mundo relativamente mais perigoso do que este, muito mais absurdo do que o de ontem, e certamente mais inexplicável.
O velho Doutor Homem, meu pai, achava que os técnicos municipais de trânsito eram os culpados do desconcerto do mundo porque lhe alteravam, com alguma frequência, a geografia das ruas com sentido proibido ou a lógica da entrada em rotundas nos subúrbios – que na altura eram muito menos numerosas do que hoje. Ele achava, não sem alguma razão, que os cavalheiros do trânsito, mancomunados com oficiais de cartografia (além de empresas de obras), percorriam o país em busca de ruas em que os carros circulavam sem problemas ou estacionavam com alguma circunspecção. Descobertas as avenidas, as ruas, as pracetas, as transversais e perpendiculares – todas a funcionar com uma regularidade aceitável – tratava-se de proceder às necessárias alterações para que houvesse, no prazo mais curto, obras, lixo, poeira, máquinas em manobras e, finalmente, problemas no trânsito. As várias classes profissionais rejubilavam, finalmente, porque tinham conseguido obter algum sucesso no seu trabalho: não só tinham sido chamadas “a concorrer para a mudança”, como tinham mesmo “mudado”. Que o resultado fosse ou uma duvidosa melhoria ou um desastre substantivo, o essencial estava feito: tínhamos mudança, tínhamos obras, tínhamos progresso. Esta santíssima trindade pode ser observada no nosso país com a infalível regularidade de um pêndulo fabricado em Vila Nova de Famalicão.
O mesmo ocorre nos dicionários. Um bando de adolescentes usa uma palavra categoricamente defeituosa e inestética? Que se introduza no Dicionário da Academia. Alguém deforma uma expressão, uma interjeição que seja, uma operação sintáctica, um advérbio? Que as gramáticas procedam às mudanças devidas. Há um acento que prejudica a frequência da internet? Que se exclua.
Mudar é um vício nacional. Não há cidadão, munido do seu Bilhete de Identidade, do seu guarda-chuva, do seu génio, que não deseje ardentemente uma mudança que cause problemas. Creio que isto se explica pela necessidade trágica e patriótica de chamar a atenção para a dificuldade de viver em paz e com alguma constância.
in Domingo - Correio da Manhã - 10 Janeiro 2010
O velho Doutor Homem, meu pai, achava que os técnicos municipais de trânsito eram os culpados do desconcerto do mundo porque lhe alteravam, com alguma frequência, a geografia das ruas com sentido proibido ou a lógica da entrada em rotundas nos subúrbios – que na altura eram muito menos numerosas do que hoje. Ele achava, não sem alguma razão, que os cavalheiros do trânsito, mancomunados com oficiais de cartografia (além de empresas de obras), percorriam o país em busca de ruas em que os carros circulavam sem problemas ou estacionavam com alguma circunspecção. Descobertas as avenidas, as ruas, as pracetas, as transversais e perpendiculares – todas a funcionar com uma regularidade aceitável – tratava-se de proceder às necessárias alterações para que houvesse, no prazo mais curto, obras, lixo, poeira, máquinas em manobras e, finalmente, problemas no trânsito. As várias classes profissionais rejubilavam, finalmente, porque tinham conseguido obter algum sucesso no seu trabalho: não só tinham sido chamadas “a concorrer para a mudança”, como tinham mesmo “mudado”. Que o resultado fosse ou uma duvidosa melhoria ou um desastre substantivo, o essencial estava feito: tínhamos mudança, tínhamos obras, tínhamos progresso. Esta santíssima trindade pode ser observada no nosso país com a infalível regularidade de um pêndulo fabricado em Vila Nova de Famalicão.
O mesmo ocorre nos dicionários. Um bando de adolescentes usa uma palavra categoricamente defeituosa e inestética? Que se introduza no Dicionário da Academia. Alguém deforma uma expressão, uma interjeição que seja, uma operação sintáctica, um advérbio? Que as gramáticas procedam às mudanças devidas. Há um acento que prejudica a frequência da internet? Que se exclua.
Mudar é um vício nacional. Não há cidadão, munido do seu Bilhete de Identidade, do seu guarda-chuva, do seu génio, que não deseje ardentemente uma mudança que cause problemas. Creio que isto se explica pela necessidade trágica e patriótica de chamar a atenção para a dificuldade de viver em paz e com alguma constância.
in Domingo - Correio da Manhã - 10 Janeiro 2010
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