O primeiro aroma de Setembro
Leitor amigo: esta semana não há nada para escrever. Tirando a minha sobrinha Maria Luísa, todos os hóspedes regressaram ao mundo exterior, deixando Moledo entregue à sua sorte. Há, evidentemente, a grandiosidade dos areais e o monstro cinzento de Santa Tecla do outro lado daquilo que, com o tempo, me atrevi a considerar "a grande baía de Moledo" – mas os hóspedes da casa partiram, um atrás do outro ou aos pares. Como é habitual, apenas um dos meus sobrinhos descobriu – no final de Agosto, o mês das ilusões – que estava perdidamente apaixonado por alguém que conheceu há dois dias, e permanece no albergue, respondendo à chamada para o almoço, que é sempre muito ligeiro, e para um ou outro jantar, que é sempre palrador.
Os dois filhos de Maria Luísa regressaram ontem mesmo de uma temporada com o pai e circulam pelo jardim desde manhã cedo (enquanto a mãe dorme até mais tarde), tentando arrancar os pés de hera junto do muro, repetindo aquilo que os seus tios eram incitados a fazer há muitos anos, no casarão de Ponte de Lima – quando o velho Doutor Homem, meu pai, lhes pagava uma moeda de dois e quinhentos por cada pé de gladíolo destruído e escondido. Dona Ester descobriu a negociata e pôs termo à devastação do jardim que fora o santuário e a fortaleza da Tia Benedita, que também não gostava de gladíolos mas os autorizava para ter alguma coisa a enfurecê-la nos momentos de boa disposição, que eram apreciados por todos nós. Não pelo facto de serem raros; mas por serem espaventosos. Esta semana tem sido, portanto, dedicada a ninharias: jornais, arrumações (sob o comando austero de Dona Elaine, a governanta de Moledo) e janelas abertas.
Dona Elaine já avisou que vai de férias em Outubro. Ela costuma proceder a estes avisos – verdadeiros alarmes na família – com a regularidade de um relógio da Sé de Braga, mas não os cumpre verdadeiramente. Abandona Moledo por dois ou três dias, ou vai passar uma semana à Madeira, deixando a despensa fornecida e as ordens dadas a uma vizinha que, ocasionalmente, também vem a casa preparar um caril. O caril de Dona Eugenia é um dos raríssimos laços que mantemos com o antigo Império, cozinhado a preceito e com mão goesa, por causa de uns primos de Lourenço Marques que trouxeram a receita para o Minho; fora isso, ela instala-se em casa durante esses breves dias de ausência de Dona Elaine, e a vida segue o seu ritmo. Quando regressa do seu período de férias, enquanto desembrulha pacotes de biscoitos, amostras de plantas e perigosas garrafas de azeite, Dona Elaine vigia todos os recantos em busca de desordens e desleixes. Eu compreendo; é o seu território. Em Moledo, no casarão de Moledo pelo menos, ela é a regente. Determina, por exemplo, os horários a que os meus sobrinhos têm de levantar-se. Eles preferiam que o dia passasse rapidamente para que chegasse a noite, o seu mundo por excelência. Ela não permite o desvario e frequentemente ameaça-os com expulsão e qualquer outra forma de excomunhão.
Não entendo neles (sem preconceitos e questões morais) três fenómenos quase passionais: concertos de 'rock' em estádios de futebol ou em salas cheias de outros rapazes suados; gosto por bares e discotecas que abrem as portas depois da meia-noite; espremer o tubo da pasta de dentes pelo topo e não pela base. O mais irritante deles é o último, mas a preferência radical e absoluta por coisas que só acontecem de noite também me traz muito perturbado uma vez por outra.
A madrugada é o meu território preferido, sobretudo aquele silêncio glorioso do dia que nasce. Fui habituado desde cedo a essa ginástica horária, para que o dia de trabalho terminasse cedo e célere. Mesmo hoje, nada se compara ao prazer do pequeno-almoço servido na cozinha, em dias de chuva. São coisas de velho. A minha sobrinha Maria Luísa prefere o pequeno-almoço na cama, e menciona hotéis onde os tabuleiros chegam carregados de 'croissants' e ovos mexidos. Trata-se de uma reinvenção burguesa dos célebres vícios antigos. As novas gerações aprendem umas coisas e ignoram as outras. Nada a fazer. Neste preciso momento ouço a discussão no andar de cima. Dona Elaine ameaça vender os filhos de Maria Luísa na feira de Cerveira, caso ela não se levante até às onze. De dentro, a minha sobrinha responde que os conhece bem (acabam de arrancar as rosas preferidas da governanta) e que não iriam dar lucro que se visse. Somos uma família perfeita.
in Revista Notícias Sábado – 8 Setembro 2007
Os dois filhos de Maria Luísa regressaram ontem mesmo de uma temporada com o pai e circulam pelo jardim desde manhã cedo (enquanto a mãe dorme até mais tarde), tentando arrancar os pés de hera junto do muro, repetindo aquilo que os seus tios eram incitados a fazer há muitos anos, no casarão de Ponte de Lima – quando o velho Doutor Homem, meu pai, lhes pagava uma moeda de dois e quinhentos por cada pé de gladíolo destruído e escondido. Dona Ester descobriu a negociata e pôs termo à devastação do jardim que fora o santuário e a fortaleza da Tia Benedita, que também não gostava de gladíolos mas os autorizava para ter alguma coisa a enfurecê-la nos momentos de boa disposição, que eram apreciados por todos nós. Não pelo facto de serem raros; mas por serem espaventosos. Esta semana tem sido, portanto, dedicada a ninharias: jornais, arrumações (sob o comando austero de Dona Elaine, a governanta de Moledo) e janelas abertas.
Dona Elaine já avisou que vai de férias em Outubro. Ela costuma proceder a estes avisos – verdadeiros alarmes na família – com a regularidade de um relógio da Sé de Braga, mas não os cumpre verdadeiramente. Abandona Moledo por dois ou três dias, ou vai passar uma semana à Madeira, deixando a despensa fornecida e as ordens dadas a uma vizinha que, ocasionalmente, também vem a casa preparar um caril. O caril de Dona Eugenia é um dos raríssimos laços que mantemos com o antigo Império, cozinhado a preceito e com mão goesa, por causa de uns primos de Lourenço Marques que trouxeram a receita para o Minho; fora isso, ela instala-se em casa durante esses breves dias de ausência de Dona Elaine, e a vida segue o seu ritmo. Quando regressa do seu período de férias, enquanto desembrulha pacotes de biscoitos, amostras de plantas e perigosas garrafas de azeite, Dona Elaine vigia todos os recantos em busca de desordens e desleixes. Eu compreendo; é o seu território. Em Moledo, no casarão de Moledo pelo menos, ela é a regente. Determina, por exemplo, os horários a que os meus sobrinhos têm de levantar-se. Eles preferiam que o dia passasse rapidamente para que chegasse a noite, o seu mundo por excelência. Ela não permite o desvario e frequentemente ameaça-os com expulsão e qualquer outra forma de excomunhão.
Não entendo neles (sem preconceitos e questões morais) três fenómenos quase passionais: concertos de 'rock' em estádios de futebol ou em salas cheias de outros rapazes suados; gosto por bares e discotecas que abrem as portas depois da meia-noite; espremer o tubo da pasta de dentes pelo topo e não pela base. O mais irritante deles é o último, mas a preferência radical e absoluta por coisas que só acontecem de noite também me traz muito perturbado uma vez por outra.
A madrugada é o meu território preferido, sobretudo aquele silêncio glorioso do dia que nasce. Fui habituado desde cedo a essa ginástica horária, para que o dia de trabalho terminasse cedo e célere. Mesmo hoje, nada se compara ao prazer do pequeno-almoço servido na cozinha, em dias de chuva. São coisas de velho. A minha sobrinha Maria Luísa prefere o pequeno-almoço na cama, e menciona hotéis onde os tabuleiros chegam carregados de 'croissants' e ovos mexidos. Trata-se de uma reinvenção burguesa dos célebres vícios antigos. As novas gerações aprendem umas coisas e ignoram as outras. Nada a fazer. Neste preciso momento ouço a discussão no andar de cima. Dona Elaine ameaça vender os filhos de Maria Luísa na feira de Cerveira, caso ela não se levante até às onze. De dentro, a minha sobrinha responde que os conhece bem (acabam de arrancar as rosas preferidas da governanta) e que não iriam dar lucro que se visse. Somos uma família perfeita.
in Revista Notícias Sábado – 8 Setembro 2007
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