O Vinho do Porto em casa
O velho Doutor Homem, meu pai, teve a sorte de ser o enviado da família a Inglaterra, antes da II Guerra, antes do casamento e antes de se falar inglês dentro das nossas fronteiras. Trouxe de lá alguns vícios muito aceitáveis, como o hábito de viajar e de ler diariamente o jornal de ponta a ponta – e a notícia de que o vinho do Porto não era tão desconsiderado em Londres como então o era na Pátria.
A namorada holandesa do meu sobrinho Pedro, Isabelle, não sabia que – até há uns anos – os portugueses pouco vinho do Porto bebiam. Felizmente, o meu sobrinho explicou as razões desse desperdício assente em duas razões: era relativamente caro e não servia para beber à mesa. As velhas tias da província, cujo arquétipo continua a ser a tia Benedita (erradamente, porque era um modelo de cosmopolitismo reaccionário), bebiam o seu vinho do Porto como um licor, em cálices que eram servidos para acompanhar biscoitos.
O meu avô, que penou pelos carris da Linha do Douro para visitar quintas onde apresentava contas e administrava a venda e a exportação do vinho do Porto, tentou – em vão – corrigir esse hábito. Desde cedo tinha aprendido a conhecer as suas variedades, as suas cores, os aromas e as circunstâncias em que um 'tawny' suave (que ele bebia ligeiramente refrescado) era mais indicado do que uma colheita de anos distantes. Nos seus anos de ilusão política, quando pensou que tinha terminado a desgraça dos anos radicais da República, chegou a fornecer de 'tawny' a garrafeira do doutor António Granjo, que de vez em quando encontrava no Porto, quando o dirigente do Partido Liberal (e ministro, antes de ser cruelmente assassinado numa das revoltas da época) subia de Lisboa à sua Chaves natal.
O velho doutor Homem, meu pai, herdou esse conhecimento e melhorou o ritual (de acordo com o que tinha aprendido em Londres, dizia ele), limitando-se, já em idade adiantada, a introduzir o porto branco e seco para provar que estava disponível para aprender até ao fim. Os Homem raramente deixaram de beber o seu porto às portas da velhice, pela simples razão de que nunca tinham exagerado no seu consumo. Moderados em tudo, conservadores, sensatos e aborrecidos, os cavalheiros da família sabiam que o álcool não terminaria logo as suas reservas e que, portanto, não era necessário apressar o passo. Salvo erro, não há memória de alcoolismo na família, pormenor que muito indispunha o tio Domingos, que partira para o Brasil em 1932 a fim de enriquecer e de esquecer um mal de amor. Regressou quarenta anos depois, rico e solteiro, sedento dos vinhos da sua pátria, que estavam proibidos de se dirigir ao seu fígado. Ele, que bebera largamente a sua cachaça no Pernambuco, acreditava que um ou outro caso de alcoolismo dava algum tom romântico a uma família que nunca se distinguiu em quase nada.
Na verdade, no final das refeições, ou de algumas refeições, passado algum tempo, era servido um porto que tinha o mérito de tranquilizar as digestões, de adoçar o espírito e de ocupar por instantes a mão direita do velho doutor Homem, meu pai – mas não mais do que isso. Ele tomava o seu porto como um medicamento. Esses hábitos morigerados impediram eventuais estragos no corpo e, cinco meses depois da revolução de 1974, chegou a brindar com porto, erguendo o seu copo arredondado e luminoso (tratava-se de um aniversário de pessoa da família), sem que alguém o repreendesse.
Eu sigo a sugestão do meu avô, que me iniciou na degustação; bebo-o apenas refrescado, depois do jantar ou muito mais tarde, se há serão. Ao segurar no copo onde o líquido dourado brilha em contraluz, julgo muitas vezes ver o velho doutor Homem, meu pai, recortado contra aquele móvel que alberga uma boa quantidade de copos e garrafas já abertas. Mas era o meu avô que merecia ser lembrado – ele já fora o responsável pela introdução do porto na dieta dos Homem – como aquele que não foi a Londres para perceber que nas esquinas do Douro nascia anualmente um tesouro para as nossas vidas. O velho doutor Homem, meu pai, escusava de ouvir estas coisas — mas a Inglaterra não é o centro do mundo.
in Revista Notícias Sábado – 15 Setembro 2007
A namorada holandesa do meu sobrinho Pedro, Isabelle, não sabia que – até há uns anos – os portugueses pouco vinho do Porto bebiam. Felizmente, o meu sobrinho explicou as razões desse desperdício assente em duas razões: era relativamente caro e não servia para beber à mesa. As velhas tias da província, cujo arquétipo continua a ser a tia Benedita (erradamente, porque era um modelo de cosmopolitismo reaccionário), bebiam o seu vinho do Porto como um licor, em cálices que eram servidos para acompanhar biscoitos.
O meu avô, que penou pelos carris da Linha do Douro para visitar quintas onde apresentava contas e administrava a venda e a exportação do vinho do Porto, tentou – em vão – corrigir esse hábito. Desde cedo tinha aprendido a conhecer as suas variedades, as suas cores, os aromas e as circunstâncias em que um 'tawny' suave (que ele bebia ligeiramente refrescado) era mais indicado do que uma colheita de anos distantes. Nos seus anos de ilusão política, quando pensou que tinha terminado a desgraça dos anos radicais da República, chegou a fornecer de 'tawny' a garrafeira do doutor António Granjo, que de vez em quando encontrava no Porto, quando o dirigente do Partido Liberal (e ministro, antes de ser cruelmente assassinado numa das revoltas da época) subia de Lisboa à sua Chaves natal.
O velho doutor Homem, meu pai, herdou esse conhecimento e melhorou o ritual (de acordo com o que tinha aprendido em Londres, dizia ele), limitando-se, já em idade adiantada, a introduzir o porto branco e seco para provar que estava disponível para aprender até ao fim. Os Homem raramente deixaram de beber o seu porto às portas da velhice, pela simples razão de que nunca tinham exagerado no seu consumo. Moderados em tudo, conservadores, sensatos e aborrecidos, os cavalheiros da família sabiam que o álcool não terminaria logo as suas reservas e que, portanto, não era necessário apressar o passo. Salvo erro, não há memória de alcoolismo na família, pormenor que muito indispunha o tio Domingos, que partira para o Brasil em 1932 a fim de enriquecer e de esquecer um mal de amor. Regressou quarenta anos depois, rico e solteiro, sedento dos vinhos da sua pátria, que estavam proibidos de se dirigir ao seu fígado. Ele, que bebera largamente a sua cachaça no Pernambuco, acreditava que um ou outro caso de alcoolismo dava algum tom romântico a uma família que nunca se distinguiu em quase nada.
Na verdade, no final das refeições, ou de algumas refeições, passado algum tempo, era servido um porto que tinha o mérito de tranquilizar as digestões, de adoçar o espírito e de ocupar por instantes a mão direita do velho doutor Homem, meu pai – mas não mais do que isso. Ele tomava o seu porto como um medicamento. Esses hábitos morigerados impediram eventuais estragos no corpo e, cinco meses depois da revolução de 1974, chegou a brindar com porto, erguendo o seu copo arredondado e luminoso (tratava-se de um aniversário de pessoa da família), sem que alguém o repreendesse.
Eu sigo a sugestão do meu avô, que me iniciou na degustação; bebo-o apenas refrescado, depois do jantar ou muito mais tarde, se há serão. Ao segurar no copo onde o líquido dourado brilha em contraluz, julgo muitas vezes ver o velho doutor Homem, meu pai, recortado contra aquele móvel que alberga uma boa quantidade de copos e garrafas já abertas. Mas era o meu avô que merecia ser lembrado – ele já fora o responsável pela introdução do porto na dieta dos Homem – como aquele que não foi a Londres para perceber que nas esquinas do Douro nascia anualmente um tesouro para as nossas vidas. O velho doutor Homem, meu pai, escusava de ouvir estas coisas — mas a Inglaterra não é o centro do mundo.
in Revista Notícias Sábado – 15 Setembro 2007
<< Home