De uma coisa a outra
Antigamente éramos mais saudáveis. Existiam as chamadas doenças gerais mas sabíamos menos dos pormenores, das complicações e das consequências de cada acto – além de não haver livros sobre doenças disponíveis para serem distribuídos ao comum dos mortais, que os coloca orgulhosamente nas estantes como um emblema de sapiência. Trata-se de uma literatura perigosa, própria dos tempos actuais, científicos e muito rigorosos. Isso explica que antigamente houvesse simples e banais dores de cabeça, mas que hoje existam cefaleias; o que antes evocava a urgência de um chá, demanda agora a presença de um especialista em doenças do aparelho urinário; a flor de laranjeira foi substituída por uma vasta quantidade de anti depressivos. A minha sobrinha, com uma regularidade que nela é inabitual, toma os seus comprimidos para dormir tal como o velho doutor Homem, meu pai, pedia o seu chá de boldo para amenizar digestões e excessos.
Hoje, sabemos o preço de cada gesto irreflectido da nossa vida de selvagens ou de provincianos do Minho. Uma hora ao sol da praia não é – como pensava dona Ester, minha mãe, para quem todos os filhos deviam bronzear-se em liberdade – uma hora de sol, mas um perigo letal para a saúde futura. Tal como um almoço de domingo, familiar e abundante, é uma ameaça para a nossa tranquilidade dietética. O colesterol é, neste particular, uma invenção recente na minha vida e ouvi falar dele há apenas cinquenta anos, quando a doença mais literária desses tempos ainda era a gota. Ao escutar os relatos dominicais sobre o sofrimento dos hipocondríacos, penso naqueles tempos em que a eternidade era apenas uma metáfora religiosa e não uma ambição de todo o ser humano.
A minha família era incuravelmente conservadora e desinteressante. Mantinha-se nessa fronteira que delimita a mediania do excesso; o cálice nocturno de vinho do Porto tinha funções profilácticas e não era um passo no caminho do pecado, do hedonismo ou do alcoolismo; o cozido à portuguesa era um ritual familiar e não um crime contra a saúde; e o charuto digestivo – o velho doutor Homem, meu pai, mandava-os vir de Vigo, por achar que os contrabandistas galegos eram mais cosmopolitas do que os nacionais – constituía um cerimonial destinado aos grandes momentos, e não um peso na consciência.
O tio Alberto, cuja biografia ficaria para sempre marcada pelo seu encontro com D. Álvaro Cunqueiro (a quem invejava os conhecimentos gastronómicos, muito mais do que a métrica dos versos do mestre galego), costumava dizer que o grande perigo da "saúde absoluta" era aumentar e expor a vaidade dos seres humanos, porque eles passavam a acreditar numa vida eterna garantida pela medicina e não pelas suas boas acções. Ele era um homem do Antigo Regime mas tinha razão. Tentou levar a tia Benedita a provar as ostras de Ribadeo ou de Corcubión, com o argumento de que a matriarca da família iria amenizar a sua rigidez de carácter ao descobrir alguns prazeres mundanos. Ela resistiu até ao fim da sua vida, com argumentos morais muito semelhantes às razões que hoje os sacerdotes da saúde usam para combater os excessos da humanidade.
No meu tempo havia toda uma mitologia em redor das ostras, um alimento do Inferno destinado a instantes de devassidão. O meu tio Alberto, que se apaixonou por uma antiga princesa do Cáspio, achava as ostras um bom ornamento para o litoral galego mas não um dos pecados enumerados pelos Concílios – quanto ao caviar, sim, era chave da antecâmara da perdição. Ele considerava que, sendo o esturjão do Cáspio um sobrevivente entre as espécies condenadas pelo Dilúvio, algum motivo haveria para ser tão prezado. A sua princesa persa era uma senhora delicada e culta que nascera já fora da Rússia, de onde a família saíra nos anos vinte. Quando soube do romance, que durou muito tempo, a tia Benedita temeu tratar-se de uma bolchevista (ela sabia de História apenas o essencial dos almanaques). O meu tio, bibliómano de São Pedro dos Arcos, não se deu ao trabalho de a desmentir. Remeteu-se ao silêncio, como um amante invejado, e limitou-se a suspirar pelo caviar.
in Revista Notícias Sábado – 6 Outubro 2007
Hoje, sabemos o preço de cada gesto irreflectido da nossa vida de selvagens ou de provincianos do Minho. Uma hora ao sol da praia não é – como pensava dona Ester, minha mãe, para quem todos os filhos deviam bronzear-se em liberdade – uma hora de sol, mas um perigo letal para a saúde futura. Tal como um almoço de domingo, familiar e abundante, é uma ameaça para a nossa tranquilidade dietética. O colesterol é, neste particular, uma invenção recente na minha vida e ouvi falar dele há apenas cinquenta anos, quando a doença mais literária desses tempos ainda era a gota. Ao escutar os relatos dominicais sobre o sofrimento dos hipocondríacos, penso naqueles tempos em que a eternidade era apenas uma metáfora religiosa e não uma ambição de todo o ser humano.
A minha família era incuravelmente conservadora e desinteressante. Mantinha-se nessa fronteira que delimita a mediania do excesso; o cálice nocturno de vinho do Porto tinha funções profilácticas e não era um passo no caminho do pecado, do hedonismo ou do alcoolismo; o cozido à portuguesa era um ritual familiar e não um crime contra a saúde; e o charuto digestivo – o velho doutor Homem, meu pai, mandava-os vir de Vigo, por achar que os contrabandistas galegos eram mais cosmopolitas do que os nacionais – constituía um cerimonial destinado aos grandes momentos, e não um peso na consciência.
O tio Alberto, cuja biografia ficaria para sempre marcada pelo seu encontro com D. Álvaro Cunqueiro (a quem invejava os conhecimentos gastronómicos, muito mais do que a métrica dos versos do mestre galego), costumava dizer que o grande perigo da "saúde absoluta" era aumentar e expor a vaidade dos seres humanos, porque eles passavam a acreditar numa vida eterna garantida pela medicina e não pelas suas boas acções. Ele era um homem do Antigo Regime mas tinha razão. Tentou levar a tia Benedita a provar as ostras de Ribadeo ou de Corcubión, com o argumento de que a matriarca da família iria amenizar a sua rigidez de carácter ao descobrir alguns prazeres mundanos. Ela resistiu até ao fim da sua vida, com argumentos morais muito semelhantes às razões que hoje os sacerdotes da saúde usam para combater os excessos da humanidade.
No meu tempo havia toda uma mitologia em redor das ostras, um alimento do Inferno destinado a instantes de devassidão. O meu tio Alberto, que se apaixonou por uma antiga princesa do Cáspio, achava as ostras um bom ornamento para o litoral galego mas não um dos pecados enumerados pelos Concílios – quanto ao caviar, sim, era chave da antecâmara da perdição. Ele considerava que, sendo o esturjão do Cáspio um sobrevivente entre as espécies condenadas pelo Dilúvio, algum motivo haveria para ser tão prezado. A sua princesa persa era uma senhora delicada e culta que nascera já fora da Rússia, de onde a família saíra nos anos vinte. Quando soube do romance, que durou muito tempo, a tia Benedita temeu tratar-se de uma bolchevista (ela sabia de História apenas o essencial dos almanaques). O meu tio, bibliómano de São Pedro dos Arcos, não se deu ao trabalho de a desmentir. Remeteu-se ao silêncio, como um amante invejado, e limitou-se a suspirar pelo caviar.
in Revista Notícias Sábado – 6 Outubro 2007
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