sábado, setembro 29, 2007

Não se pode voltar atrás

A minha sobrinha perguntou-me, como se folheasse uma enciclopédia, "se tinha havido cabralistas" na família. O leitor, chegado aqui, interroga-se sobre o século em que vive, mas nós somos gente que parou no tempo e não se importa que o planeta continue a rodar. Tirando as minhas irmãs, que se actualizam permanentemente (e viajam bas­tante), e Dona Elaine (a governanta de Moledo), que está de férias na Madeira, os Homem nunca pensaram muito nas glórias do futuro e limitaram-se a acompanhar os movimen­tos de rotação e translação sem se interrogarem sobre os desígnios do Criador.

O velho Doutor Homem, meu pai, temia que isso fosse con­fundido com misantropia; na verdade, era apenas uma forma de resignação. O causídico conheceu bem a natureza das glórias desfeitas e das esperanças desenganadas; do final da l República ao fim da II Guerra, coleccionou algumas delas. O seu anti-salazarismo era elegante e fátuo, como se precisasse do Dr. Salazar para animar o seu sentido de humor, que era assassino e cheio de crueldade — ele dizia que o professor de Coimbra calçava botins comprados "na Saville Row de Santa Comba Dão", o que serve para dar uma ideia do seu dandismo incurável. Esse snobismo mos­trava que conhecia mundo, mas a verdade é que nas duas últimas décadas da sua vida não abandonou o seu alfaiate na Rua dos Clérigos.

Depois de EI-Alamein e do colapso do Afrikakorps, da bata­lha de Monte Cassino e, uns meses depois, do desembar­que na Normandia, ele alimentou a esperança de que o mundo se interessasse por Portugal, o que seria um absurdo. A vida continuou com poucas alterações visíveis, o que foi outro absurdo, e a família continuou a passar as férias em Ponte de Lima, rodeada de velharias e dos antepassados. De entre estes, como se previa, não havia cabralistas e, salvo erro, já não havia memória da Maria da Fonte nem do padre Casimiro José Vieira – que era o assunto que interes­sava a minha sobrinha, que procura armadilhas na própria genealogia ou distracções políticas que possa usar para escrever a sua história da família.

De facto, podíamos ser outros. Podíamos ter mudado de bandeira e de passado, como se fosse possível uma cirurgia plástica nos enxertos que envergonham o nosso século democrático. Podíamos ter tomado os vários comboios do progresso e da moderni­dade. Mas estivemos do lado dos derrotados e não foi por distracção nem por armadilha. Para o Tio Alberto, o bibliófi­lo da família – o nosso aventureiro de emblema — isso oco­rreu porque éramos fiéis a amigos e leais ao passado, que não podia alterar-se, além de ligeiramente preguiçosos.

As minhas duas irmãs, que conhecem o mundo e raramente se escandalizam, acham que tudo se reduz à mania das coi­sas antiquadas, sem utilidade, e às dema­siadas leituras que afastaram os cavalhei­ros das realidades do dia-a-dia. Quando se fala do assunto ("as realidades do dia-a-dia"), sou eu que estou na berlinda; a acu­sação paira como uma ameaça iminente, porque ninguém me mandou ser celibatá­rio. Elas supõem, não sem metade da razão, que se tratou de uma escolha egoísta que me poupou às alegrias da paternidade, ao sarampo, às noites de mau sono e ao trata­mento da papeira e da primeira dentição, coisas que teriam feito de mim um homem diferente, como uma espécie de serviço militar de antanho – se lhe acrescentarmos a outra dura realidade, "ter de aturar uma mulher".

Nesta idade não sei averiguar nem distinguir aquilo que é hábito e o que passa por ser vício, mas creio que discordo. Os outros acham que poderíamos ter sido outras pessoas; a minha sobrinha procura, por pirraça, um sinal de desvio na nossa história política; as minhas irmãs gostariam que eu tivesse casado e dedicado menos tempo aos livros, à profissão e ao que apenas as minhas memórias guardam com o pudor de um velho. Podíamos. Podia. Podíamos, sempre, ter sido outra coisa. Mas dizemos isso passados muitos anos, quando não se pode voltar atrás.

in Revista Notícias Sábado – 29 Setembro 2007