Não se pode voltar atrás
A minha sobrinha perguntou-me, como se folheasse uma enciclopédia, "se tinha havido cabralistas" na família. O leitor, chegado aqui, interroga-se sobre o século em que vive, mas nós somos gente que parou no tempo e não se importa que o planeta continue a rodar. Tirando as minhas irmãs, que se actualizam permanentemente (e viajam bastante), e Dona Elaine (a governanta de Moledo), que está de férias na Madeira, os Homem nunca pensaram muito nas glórias do futuro e limitaram-se a acompanhar os movimentos de rotação e translação sem se interrogarem sobre os desígnios do Criador.
O velho Doutor Homem, meu pai, temia que isso fosse confundido com misantropia; na verdade, era apenas uma forma de resignação. O causídico conheceu bem a natureza das glórias desfeitas e das esperanças desenganadas; do final da l República ao fim da II Guerra, coleccionou algumas delas. O seu anti-salazarismo era elegante e fátuo, como se precisasse do Dr. Salazar para animar o seu sentido de humor, que era assassino e cheio de crueldade — ele dizia que o professor de Coimbra calçava botins comprados "na Saville Row de Santa Comba Dão", o que serve para dar uma ideia do seu dandismo incurável. Esse snobismo mostrava que conhecia mundo, mas a verdade é que nas duas últimas décadas da sua vida não abandonou o seu alfaiate na Rua dos Clérigos.
Depois de EI-Alamein e do colapso do Afrikakorps, da batalha de Monte Cassino e, uns meses depois, do desembarque na Normandia, ele alimentou a esperança de que o mundo se interessasse por Portugal, o que seria um absurdo. A vida continuou com poucas alterações visíveis, o que foi outro absurdo, e a família continuou a passar as férias em Ponte de Lima, rodeada de velharias e dos antepassados. De entre estes, como se previa, não havia cabralistas e, salvo erro, já não havia memória da Maria da Fonte nem do padre Casimiro José Vieira – que era o assunto que interessava a minha sobrinha, que procura armadilhas na própria genealogia ou distracções políticas que possa usar para escrever a sua história da família.
De facto, podíamos ser outros. Podíamos ter mudado de bandeira e de passado, como se fosse possível uma cirurgia plástica nos enxertos que envergonham o nosso século democrático. Podíamos ter tomado os vários comboios do progresso e da modernidade. Mas estivemos do lado dos derrotados e não foi por distracção nem por armadilha. Para o Tio Alberto, o bibliófilo da família – o nosso aventureiro de emblema — isso ocorreu porque éramos fiéis a amigos e leais ao passado, que não podia alterar-se, além de ligeiramente preguiçosos.
As minhas duas irmãs, que conhecem o mundo e raramente se escandalizam, acham que tudo se reduz à mania das coisas antiquadas, sem utilidade, e às demasiadas leituras que afastaram os cavalheiros das realidades do dia-a-dia. Quando se fala do assunto ("as realidades do dia-a-dia"), sou eu que estou na berlinda; a acusação paira como uma ameaça iminente, porque ninguém me mandou ser celibatário. Elas supõem, não sem metade da razão, que se tratou de uma escolha egoísta que me poupou às alegrias da paternidade, ao sarampo, às noites de mau sono e ao tratamento da papeira e da primeira dentição, coisas que teriam feito de mim um homem diferente, como uma espécie de serviço militar de antanho – se lhe acrescentarmos a outra dura realidade, "ter de aturar uma mulher".
Nesta idade não sei averiguar nem distinguir aquilo que é hábito e o que passa por ser vício, mas creio que discordo. Os outros acham que poderíamos ter sido outras pessoas; a minha sobrinha procura, por pirraça, um sinal de desvio na nossa história política; as minhas irmãs gostariam que eu tivesse casado e dedicado menos tempo aos livros, à profissão e ao que apenas as minhas memórias guardam com o pudor de um velho. Podíamos. Podia. Podíamos, sempre, ter sido outra coisa. Mas dizemos isso passados muitos anos, quando não se pode voltar atrás.
in Revista Notícias Sábado – 29 Setembro 2007
O velho Doutor Homem, meu pai, temia que isso fosse confundido com misantropia; na verdade, era apenas uma forma de resignação. O causídico conheceu bem a natureza das glórias desfeitas e das esperanças desenganadas; do final da l República ao fim da II Guerra, coleccionou algumas delas. O seu anti-salazarismo era elegante e fátuo, como se precisasse do Dr. Salazar para animar o seu sentido de humor, que era assassino e cheio de crueldade — ele dizia que o professor de Coimbra calçava botins comprados "na Saville Row de Santa Comba Dão", o que serve para dar uma ideia do seu dandismo incurável. Esse snobismo mostrava que conhecia mundo, mas a verdade é que nas duas últimas décadas da sua vida não abandonou o seu alfaiate na Rua dos Clérigos.
Depois de EI-Alamein e do colapso do Afrikakorps, da batalha de Monte Cassino e, uns meses depois, do desembarque na Normandia, ele alimentou a esperança de que o mundo se interessasse por Portugal, o que seria um absurdo. A vida continuou com poucas alterações visíveis, o que foi outro absurdo, e a família continuou a passar as férias em Ponte de Lima, rodeada de velharias e dos antepassados. De entre estes, como se previa, não havia cabralistas e, salvo erro, já não havia memória da Maria da Fonte nem do padre Casimiro José Vieira – que era o assunto que interessava a minha sobrinha, que procura armadilhas na própria genealogia ou distracções políticas que possa usar para escrever a sua história da família.
De facto, podíamos ser outros. Podíamos ter mudado de bandeira e de passado, como se fosse possível uma cirurgia plástica nos enxertos que envergonham o nosso século democrático. Podíamos ter tomado os vários comboios do progresso e da modernidade. Mas estivemos do lado dos derrotados e não foi por distracção nem por armadilha. Para o Tio Alberto, o bibliófilo da família – o nosso aventureiro de emblema — isso ocorreu porque éramos fiéis a amigos e leais ao passado, que não podia alterar-se, além de ligeiramente preguiçosos.
As minhas duas irmãs, que conhecem o mundo e raramente se escandalizam, acham que tudo se reduz à mania das coisas antiquadas, sem utilidade, e às demasiadas leituras que afastaram os cavalheiros das realidades do dia-a-dia. Quando se fala do assunto ("as realidades do dia-a-dia"), sou eu que estou na berlinda; a acusação paira como uma ameaça iminente, porque ninguém me mandou ser celibatário. Elas supõem, não sem metade da razão, que se tratou de uma escolha egoísta que me poupou às alegrias da paternidade, ao sarampo, às noites de mau sono e ao tratamento da papeira e da primeira dentição, coisas que teriam feito de mim um homem diferente, como uma espécie de serviço militar de antanho – se lhe acrescentarmos a outra dura realidade, "ter de aturar uma mulher".
Nesta idade não sei averiguar nem distinguir aquilo que é hábito e o que passa por ser vício, mas creio que discordo. Os outros acham que poderíamos ter sido outras pessoas; a minha sobrinha procura, por pirraça, um sinal de desvio na nossa história política; as minhas irmãs gostariam que eu tivesse casado e dedicado menos tempo aos livros, à profissão e ao que apenas as minhas memórias guardam com o pudor de um velho. Podíamos. Podia. Podíamos, sempre, ter sido outra coisa. Mas dizemos isso passados muitos anos, quando não se pode voltar atrás.
in Revista Notícias Sábado – 29 Setembro 2007
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