Ser velho, esse perigo
Na ‘Brasileira de Prazins’, um dos soberbos abades de Camilo Castelo Branco, julgando que estava para breve o regresso do senhor D. Miguel à sua província, para os arredores da Póvoa de Lanhoso, comentava que "a Rússia move-se, é o que é". Queria ele dizer que havia uma força a suportar o ultramontanismo, a Rússia da época.
Parte dos meus leitores supõe que vivo no meu tempo e não me atrevo a dar um passo naquele que lhes pertence; entre os dois mundos existiria uma barreira capaz de esconder a Torre de Babel. Basta-lhes, para isso, observar a minha condição de Matusalém minhoto. A conclusão é tirada depois de reler um bom número destas crónicas, uma espécie de "relatos ou memórias de família" que em tempos a vaidade me obrigou a aceitar escrever. O leitor quer actualidade e perseverança, que trate de assuntos contemporâneos – tarefas para que estou pouco indicado e para que nunca fui educado. O presente é tarefa das gerações do futuro, porque o tratam com um olho no dia de amanhã, espreitando o efeito de cada palavra e prevendo as suas consequências. Ora, convém assentar que a idade é um facto. Podemos mascarar as rugas e o estado das artérias, porque há tratamentos médicos, e podemos até anunciar que aos oitenta anos estamos feitos ginastas. Com receita médica, caminho um quilómetro todos os dias; os restantes faço-os por minha conta e risco. Mas não podemos inventar interesses que não temos.
Matusalém, o avô de Noé, viveu 969 anos; eu limito-me a contabilizar o dia-a-dia. As minhas irmãs, por exemplo, andam preocupadas com o destino do "caso McCann"; elas acham que o género humano decaiu bastante e que é preciso dar um exemplo de moralidade ou, pelo menos, de justiça célere. Velho como sou, peco-lhes que esperem, com o argumento de que li mais romances populares do que elas — e o derradeiro capítulo é quase sempre uma surpresa. O facto é que a crueldade do caso pouco tem a ver com o assunto; desenlaces mais brutais aconteceram entretanto.
A idade transforma-nos bastante; na maior parte das vezes torna-nos indiferentes e põe-nos a acreditar no acaso, que é o grande motor das coisas. Isso indispõe grande parte da família, que é positivista, disciplinada e moderna – embora continue céptica. Acompanho pela televisão, uma vez por dia, os negócios da pátria. Vejo os seus crimes, os seus sucessos, os seus computadores na escola, o seu râguebi (um desporto da minha adolescência) e os seus erros de gramática. Na verdade, não poderia acrescentar nada de especial. Esta é a minha pátria, este recanto sem explicação; Moledo é um retiro como qualquer outro, tirando o facto de ser o meu retiro. Reuni dentro das suas paredes tudo que me há-de acompanhar até ao último momento – os livros, os cadernos de bibliófilo do tio Alberto, o serviço da Companhia das índias que a tia Benedita criteriosamente defendeu de assaltantes imaginários, as fotografias que relembram a existência real da família no último século e uma pequena quantidade de medicamentos a que recorro diariamente por obrigação e não por vaidade.
O velho doutor Homem, meu pai, acreditava que "a velhice era um termo de residência"; não só proporcionava alguma tranquilidade como também indicava à morte o lugar onde teria de vir buscar-nos chegado o dia. Estes pensamentos vão bem com o Outono, com a sua carga de nuvens tépidas e macias, enovelando-se sobre as colinas escuras do Minho. Não acredito, como o gordo abade de Camilo, que a Rússia se mova: a única coisa que regressou ao casarão de Ponte de Lima, passados quase duzentos anos, foi o retrato do senhor D. Miguel, e não ele mesmo. A família acomodou-se bem a fazer parte dos vencidos da História, não tendo sofrido represálias nem tendo contribuído para as conspirações sucessivas. Estranha sabedoria da velhice, reconheço: postos diante dos ventos da História, que eram democráticos, os Homem de outros tempos mantiveram a sua direcção mas caminharam sem arrastar mais ninguém. Basta-lhes a sua derrota.
Mas, como é uma derrota silenciosa, o retrato vai-nos bem, domingueiro e sereno, como uma gravura antiga. É isso que nos protege, a idade.
in Revista Notícias Sábado – 22 Setembro 2007
Parte dos meus leitores supõe que vivo no meu tempo e não me atrevo a dar um passo naquele que lhes pertence; entre os dois mundos existiria uma barreira capaz de esconder a Torre de Babel. Basta-lhes, para isso, observar a minha condição de Matusalém minhoto. A conclusão é tirada depois de reler um bom número destas crónicas, uma espécie de "relatos ou memórias de família" que em tempos a vaidade me obrigou a aceitar escrever. O leitor quer actualidade e perseverança, que trate de assuntos contemporâneos – tarefas para que estou pouco indicado e para que nunca fui educado. O presente é tarefa das gerações do futuro, porque o tratam com um olho no dia de amanhã, espreitando o efeito de cada palavra e prevendo as suas consequências. Ora, convém assentar que a idade é um facto. Podemos mascarar as rugas e o estado das artérias, porque há tratamentos médicos, e podemos até anunciar que aos oitenta anos estamos feitos ginastas. Com receita médica, caminho um quilómetro todos os dias; os restantes faço-os por minha conta e risco. Mas não podemos inventar interesses que não temos.
Matusalém, o avô de Noé, viveu 969 anos; eu limito-me a contabilizar o dia-a-dia. As minhas irmãs, por exemplo, andam preocupadas com o destino do "caso McCann"; elas acham que o género humano decaiu bastante e que é preciso dar um exemplo de moralidade ou, pelo menos, de justiça célere. Velho como sou, peco-lhes que esperem, com o argumento de que li mais romances populares do que elas — e o derradeiro capítulo é quase sempre uma surpresa. O facto é que a crueldade do caso pouco tem a ver com o assunto; desenlaces mais brutais aconteceram entretanto.
A idade transforma-nos bastante; na maior parte das vezes torna-nos indiferentes e põe-nos a acreditar no acaso, que é o grande motor das coisas. Isso indispõe grande parte da família, que é positivista, disciplinada e moderna – embora continue céptica. Acompanho pela televisão, uma vez por dia, os negócios da pátria. Vejo os seus crimes, os seus sucessos, os seus computadores na escola, o seu râguebi (um desporto da minha adolescência) e os seus erros de gramática. Na verdade, não poderia acrescentar nada de especial. Esta é a minha pátria, este recanto sem explicação; Moledo é um retiro como qualquer outro, tirando o facto de ser o meu retiro. Reuni dentro das suas paredes tudo que me há-de acompanhar até ao último momento – os livros, os cadernos de bibliófilo do tio Alberto, o serviço da Companhia das índias que a tia Benedita criteriosamente defendeu de assaltantes imaginários, as fotografias que relembram a existência real da família no último século e uma pequena quantidade de medicamentos a que recorro diariamente por obrigação e não por vaidade.
O velho doutor Homem, meu pai, acreditava que "a velhice era um termo de residência"; não só proporcionava alguma tranquilidade como também indicava à morte o lugar onde teria de vir buscar-nos chegado o dia. Estes pensamentos vão bem com o Outono, com a sua carga de nuvens tépidas e macias, enovelando-se sobre as colinas escuras do Minho. Não acredito, como o gordo abade de Camilo, que a Rússia se mova: a única coisa que regressou ao casarão de Ponte de Lima, passados quase duzentos anos, foi o retrato do senhor D. Miguel, e não ele mesmo. A família acomodou-se bem a fazer parte dos vencidos da História, não tendo sofrido represálias nem tendo contribuído para as conspirações sucessivas. Estranha sabedoria da velhice, reconheço: postos diante dos ventos da História, que eram democráticos, os Homem de outros tempos mantiveram a sua direcção mas caminharam sem arrastar mais ninguém. Basta-lhes a sua derrota.
Mas, como é uma derrota silenciosa, o retrato vai-nos bem, domingueiro e sereno, como uma gravura antiga. É isso que nos protege, a idade.
in Revista Notícias Sábado – 22 Setembro 2007
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