sábado, agosto 25, 2007

Ventos de Agosto

O vento de Agosto, de que nos despedimos, é uma amostra da inclemência de Moledo durante o nosso Verão atlântico. Como costumava repetir Dona Ester (minha mãe), nem tudo são alegrias durante o Verão. Ela acreditava que a beleza dos homens dependia muito do seu bronzeado e empur­rava-nos para a praia com o duplo objectivo de nos embe­lezar e de se livrar do incómodo ruído de meia dúzia de adolescentes; mas enviava agasalhos porque conhecia a rebeldia dos elementos.

Porém, a esse vento, atribuo-lhe também propriedades lite­rárias, com a sua ameaça de friagem ao final da tarde, boa tanto para a actividade contemplativa como para usar casa­cos de fora de estação. Os meus sobrinhos lamentam muito a aragem e desconfiam de que o mundo anda às avessas ou de que um cataclismo se aproxima (mencionam frequente­mente o aquecimento global).

Não é verdade. Eles queriam um Verão cheio de Verão, quente ou abrasador, regular e pontual como um velho horário de velhos comboios ingleses de antes da guerra; a natureza, ou pelo menos o mês de Agosto (um de cada vez), é um conjunto de incertezas para que devemos estar preparados. As nuvens de Verão, empurradas pelo vento, dão uma impressão de aparente desordem que só o tempo e a idade podem ajudar a com­preender, precisamente porque ensinam que "este" nunca é o último Verão.

De entre as idiossincrasias da minha discoteca cheia de velharias e de inutilidades, dividida entre os clássicos e algum jazz, o vento de Agosto sempre teve boa companhia e lembra-me 'Blue in Green', de John Coltrane, mas deve ser por outro motivo qualquer, um dos quais surpreender a minha sobrinha Maria Luísa com a revelação de que existia luz e futuro antes do Titanic'.

Houve um tempo em que fui jovem, apesar de os meus irmãos me acusarem de ter nascido com os trinta anos já feitos; dessa juventude, breve e inútil, guardo recordações que não interessam senão a arqueólogos e a conservadores de museu. Os meus amores foram como o vento de Agosto, uma espé­cie de contratempo inexplicável e sem jeito. Quase nenhum triunfou sobre a passagem do tempo, e quase nenhum durou mais do que decência autoriza. Algumas dessas recordações levam-me a rever pessoas que já desapare­ceram, como páginas de um livro que não tenho o direito de abrir para ler em voz alta, senão para apenas contemplar os melhores parágrafos, um capítulo solto, uma passagem etérea ou mais sonhadora.

Durante muito tempo, as minhas irmãs acusaram-me de falta de jeito para conservar um namoro, um conhecimento; elas acreditavam que a inabilidade para trabalhos domésti­cos (o chamado 'bricolage') se prolongava na minha pobre existência de um Don Juan talhado para as despedidas, que geralmente ocorriam depois do Verão. Só a Tia Benedita (o velho Doutor Homem, meu pai, e Dona Ester, minha mãe, abstinham-se de comentar - eles conheciam-me bem), ape­sar da sua frieza, manifestava alguma compreensão e não me acusava de desperdiçar o meu tempo: ela acreditava (por isso era a matriarca da família) que eu tinha pouca sorte. Era o seu momento de compaixão, julgo eu. Na verdade, não se tratava de pouca sorte: eu tive sorte e não me lamento.

Quando chega Agosto e quando Agosto se despede, ano após ano, relembro a passagem desses devaneios como coisas "que poderiam ter sido". Tudo poderia ter resultado, tudo poderia ter sido de outra maneira, mas há uma abominável sensatez que manda reorganizar o mundo a partir do que ele é e não a partir do que ele poderia ter sido. Conservo retratos, evidentemente, mas pertencem àquela categoria de objectos que não cabem em nenhum catálogo nem servem para reconstituir uma biogra­fia. Os amores passados são sempre amores de Verão.

O velho Doutor Homem, meu pai, percebia esse sentimento e declarava-me absolvido. A sua relação com as estações do ano era sempre fácil e desinteressada. Ele tinha apren­dido que não se devia discutir com o destino.

in Revista Notícias Sábado – 25 Agosto 2007