Os livros em casa
Os livros ocupam uma parte substancial da minha vida. As minhas irmãs, ronronando, inquietam-se com a minha saúde no meio do pó e, pior, das recordações estapafúrdias que vêm nos livros. Olham para a biblioteca, que ocupa a maior divisão da casa, e onde se amontoa aquilo que é normal aparecer numa biblioteca, e perguntam-me se eu tenho alguma ideia do que quero "fazer com aquilo".
Desde há muito que vesti a pele do Matusalém minhoto, mais velho do que o Titanic', anterior às mimosas do monte de Santa Luzia, e não me incomoda a pergunta; mais cruamente, mas com delicadeza, é necessário saber o que fazer com todos esses livros depois da minha morte. O velho Doutor Homem, meu pai, soube-o sempre – eu cuidei dos seus livros como de uma segunda pele, e encarreguei-me de trazer da casa do Tio Alberto (em São Pedro de Arcos) a derradeira lembrança daquele homem: livros.
Eram milhares, o que correspondia a uma vida de celibatário e de gastrónomo, as duas principais ocupações que nenhuma biografia pode ignorar. A gastronomia imunizava-o contra a solidão e o mal-estar do mundo; o celibato (mas não mais do que isso, um estado civil) poupara-o a prestar contas das suas aventuras. O que ele sacrificou a altar de ambas as coisas, nós não sabemos. Mas a colecção completa de ‘The Sportsman' e o cuidado com que tratava as obras de Charles Caleb Colton dariam uma ideia do seu temperamento.
Foi com ele que criei uma obsessão que me acompanhou durante toda a vida: o relógio de Camilo Castelo Branco, uma relíquia que pertencera a Manuel Pinheiro Alves, primeiro marido de Ana Plácido. Nas minhas peregrinações à casa de São Miguel de Seide, detenho-me nesse ponto para reflectir sobre a crueldade e a vaidade dos homens, mas nunca percebi por que razão Camilo usou esse relógio do brasileiro. O Tio Alberto, prático e melancólico, sugeria que se tratava de vingança e de frieza. Seja como for, há uma biblioteca. E, havendo uma biblioteca, terá de haver um destino para os livros.
A minha sobrinha Maria Luísa tentou, há anos, convencer-me a catalogá-los; expliquei-lhe que não havia ordem possível num mundo daqueles, em que a organização das lombadas dependia de simpatias pessoais mais do que de um sentido apurado da disciplina e do conhecimento literário. Sim, os poetas ingleses estão ali; o romance (com os clássicos varridos a dedo) mais além; a biblioteca regional ao fundo da sala, com os seus almanaques, monografias de vilas e lugarejos, descrições de chafarizes ou recordações galegas; os clássicos portugueses estão perto, reluzindo do alto das estantes - e por aí adiante, sem qualquer outra ordem ou critério que se entenda fora destas paredes.
Ela acha que não compreende e atribui o meu desmazelo à ideia de que sou preguiçoso. Pelo contrário, ela é organizada – vive em Braga, onde trabalha em "design" para famílias que podem dar-se ao luxo de contratar alguém para lhes mudar a casa. Para ela, uma "mudança de casa", uma "reforma de casa", são coisas naturais e simples.
Geralmente, os ricos não têm livros. Por isso são ricos. Mudar uma casa de gente rica não implica empilhar centenas ou sequer uma dezena de caixas de livros. Digamos que se contentam com pouco e são a prova geral de que uma das tarefas do ensino, em geral, será a de conseguir que as novas gerações consigam ler, escrever e contar com alguma proficiência. A mim, pelo contrário, uma casa sem duas prateleiras de bons livros parece-me uma parte do deserto de Moçâmedes (onde tivemos um tio agrimensor). É vaidade de velho e arrogância de um minhoto de antes da guerra civil (a de oitocentos, porque não houve outra).
A minha sobrinha acha absurdo que, tendo eu lido alguns livros essenciais, e mantendo uma biblioteca razoável, me não importe de ser um conservador dos de primeira. Sobre isso não sei, mas respondo que acho estranho ela ter lido alguns desses livros, ter guardado o prazer de os escolher e de os guardar, e continuar a votar à esquerda. Sobre isso não nos entendemos, mas registo que as suas opiniões têm mudado e que fica mais céptica quando vê o Dr. Louçã a perorar na televisão. Com a idade tudo pode acontecer. Há esperança mesmo depois do Verão.
in Revista Notícias Sábado – 1 Setembro 2007
Desde há muito que vesti a pele do Matusalém minhoto, mais velho do que o Titanic', anterior às mimosas do monte de Santa Luzia, e não me incomoda a pergunta; mais cruamente, mas com delicadeza, é necessário saber o que fazer com todos esses livros depois da minha morte. O velho Doutor Homem, meu pai, soube-o sempre – eu cuidei dos seus livros como de uma segunda pele, e encarreguei-me de trazer da casa do Tio Alberto (em São Pedro de Arcos) a derradeira lembrança daquele homem: livros.
Eram milhares, o que correspondia a uma vida de celibatário e de gastrónomo, as duas principais ocupações que nenhuma biografia pode ignorar. A gastronomia imunizava-o contra a solidão e o mal-estar do mundo; o celibato (mas não mais do que isso, um estado civil) poupara-o a prestar contas das suas aventuras. O que ele sacrificou a altar de ambas as coisas, nós não sabemos. Mas a colecção completa de ‘The Sportsman' e o cuidado com que tratava as obras de Charles Caleb Colton dariam uma ideia do seu temperamento.
Foi com ele que criei uma obsessão que me acompanhou durante toda a vida: o relógio de Camilo Castelo Branco, uma relíquia que pertencera a Manuel Pinheiro Alves, primeiro marido de Ana Plácido. Nas minhas peregrinações à casa de São Miguel de Seide, detenho-me nesse ponto para reflectir sobre a crueldade e a vaidade dos homens, mas nunca percebi por que razão Camilo usou esse relógio do brasileiro. O Tio Alberto, prático e melancólico, sugeria que se tratava de vingança e de frieza. Seja como for, há uma biblioteca. E, havendo uma biblioteca, terá de haver um destino para os livros.
A minha sobrinha Maria Luísa tentou, há anos, convencer-me a catalogá-los; expliquei-lhe que não havia ordem possível num mundo daqueles, em que a organização das lombadas dependia de simpatias pessoais mais do que de um sentido apurado da disciplina e do conhecimento literário. Sim, os poetas ingleses estão ali; o romance (com os clássicos varridos a dedo) mais além; a biblioteca regional ao fundo da sala, com os seus almanaques, monografias de vilas e lugarejos, descrições de chafarizes ou recordações galegas; os clássicos portugueses estão perto, reluzindo do alto das estantes - e por aí adiante, sem qualquer outra ordem ou critério que se entenda fora destas paredes.
Ela acha que não compreende e atribui o meu desmazelo à ideia de que sou preguiçoso. Pelo contrário, ela é organizada – vive em Braga, onde trabalha em "design" para famílias que podem dar-se ao luxo de contratar alguém para lhes mudar a casa. Para ela, uma "mudança de casa", uma "reforma de casa", são coisas naturais e simples.
Geralmente, os ricos não têm livros. Por isso são ricos. Mudar uma casa de gente rica não implica empilhar centenas ou sequer uma dezena de caixas de livros. Digamos que se contentam com pouco e são a prova geral de que uma das tarefas do ensino, em geral, será a de conseguir que as novas gerações consigam ler, escrever e contar com alguma proficiência. A mim, pelo contrário, uma casa sem duas prateleiras de bons livros parece-me uma parte do deserto de Moçâmedes (onde tivemos um tio agrimensor). É vaidade de velho e arrogância de um minhoto de antes da guerra civil (a de oitocentos, porque não houve outra).
A minha sobrinha acha absurdo que, tendo eu lido alguns livros essenciais, e mantendo uma biblioteca razoável, me não importe de ser um conservador dos de primeira. Sobre isso não sei, mas respondo que acho estranho ela ter lido alguns desses livros, ter guardado o prazer de os escolher e de os guardar, e continuar a votar à esquerda. Sobre isso não nos entendemos, mas registo que as suas opiniões têm mudado e que fica mais céptica quando vê o Dr. Louçã a perorar na televisão. Com a idade tudo pode acontecer. Há esperança mesmo depois do Verão.
in Revista Notícias Sábado – 1 Setembro 2007
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