As árvores do apocalipse
Dona Elaine, a governanta deste eremitério de Moledo, acha que os incendiários deviam ser lançados no mar de chamas que provocam. Di-lo contemplando as nuvens de fumo que sobem e descem pelas montanhas, elevando-se nos ares entre a cinza que aterra sobre as casas. Ela nasceu em Roboreda, na colina que desce da serra sobre Cerveira, e mesmo tendo emigrado – em criança, com a família – para o Rio de Janeiro, nunca esqueceu os pinhais que iluminavam, à distância, o rio Minho e a velha aldeia a que regressou, jovem viúva, disposta a gozar algumas arrecadas.
A ideia de felicidade, na chamada grande literatura, não existia se não houvesse grandes florestas; as árvores não só embelezavam o universo como eram, também, guardiãs de segredos incomunicáveis. Árvores que nasciam, cresciam e perduravam – raramente morriam. A minha existência como botânico deve muito a esses livros onde as florestas eram descritas como oceanos luxuriantes (todo o arvoredo precisava de um adjectivo), fontes de sombra, tranquilidade e contos de fadas. Mesmo dispensando estes últimos, restavam as árvores. O meu Minho juvenil, tanto como o meu Minho da idade madura, eram pródigos em arvoredos protegidos e elogiados, à excepção do aroma adocicado das mimosas na velhíssima estrada de Viana (que hoje já não existe e foi substituída por um nó de vias rápidas e auto-estradas).
Quando me fixei definitivamente em Moledo, nos anos oitenta, havia, além do mar – e da sua grande razão de existir, o iodo –, outro motivo para a escolha: as árvores que rodeavam a casa, e tanto a assombravam como a protegiam. Elas recordavam-me a solidão feliz em que tinha vivido o Tio Alberto, o bibliófilo de São Pedro de Arcos, envolvido nas sombras que não perturbavam as suas recordações nem esgotavam o seu sentimentalismo. Vivo rodeado dessas árvores – mesmo daquelas que já não existem e foram sucumbindo, naturalmente. Dão-me sombra, dão-me cor, dão-me a sensação de que o mundo ainda pode continuar a existir entre as finas e modestas cordilheiras da Serra d’Arga e os vales do rio Âncora.
Os meus sobrinhos não assistiram a esse ciclo de árvores que nascem, crescem e perduram. Conhecem as suas fases terminais, o fim das florestas e o descrédito das montanhas consumidas pelos fogos. De certa maneira, habituaram-se a esta forma de apocalipse moderno em que não existem clareiras, trilhos entre freixos e carvalhos, a frescura antiga de um bosque. Dona Elaine lamenta-se, na varanda. Olha o mar, de costas voltadas para o mar de chamas.
in Domingo - Correio da Manhã - 22 Agosto 2010
A ideia de felicidade, na chamada grande literatura, não existia se não houvesse grandes florestas; as árvores não só embelezavam o universo como eram, também, guardiãs de segredos incomunicáveis. Árvores que nasciam, cresciam e perduravam – raramente morriam. A minha existência como botânico deve muito a esses livros onde as florestas eram descritas como oceanos luxuriantes (todo o arvoredo precisava de um adjectivo), fontes de sombra, tranquilidade e contos de fadas. Mesmo dispensando estes últimos, restavam as árvores. O meu Minho juvenil, tanto como o meu Minho da idade madura, eram pródigos em arvoredos protegidos e elogiados, à excepção do aroma adocicado das mimosas na velhíssima estrada de Viana (que hoje já não existe e foi substituída por um nó de vias rápidas e auto-estradas).
Quando me fixei definitivamente em Moledo, nos anos oitenta, havia, além do mar – e da sua grande razão de existir, o iodo –, outro motivo para a escolha: as árvores que rodeavam a casa, e tanto a assombravam como a protegiam. Elas recordavam-me a solidão feliz em que tinha vivido o Tio Alberto, o bibliófilo de São Pedro de Arcos, envolvido nas sombras que não perturbavam as suas recordações nem esgotavam o seu sentimentalismo. Vivo rodeado dessas árvores – mesmo daquelas que já não existem e foram sucumbindo, naturalmente. Dão-me sombra, dão-me cor, dão-me a sensação de que o mundo ainda pode continuar a existir entre as finas e modestas cordilheiras da Serra d’Arga e os vales do rio Âncora.
Os meus sobrinhos não assistiram a esse ciclo de árvores que nascem, crescem e perduram. Conhecem as suas fases terminais, o fim das florestas e o descrédito das montanhas consumidas pelos fogos. De certa maneira, habituaram-se a esta forma de apocalipse moderno em que não existem clareiras, trilhos entre freixos e carvalhos, a frescura antiga de um bosque. Dona Elaine lamenta-se, na varanda. Olha o mar, de costas voltadas para o mar de chamas.
in Domingo - Correio da Manhã - 22 Agosto 2010
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