domingo, agosto 08, 2010

Moledo: para quem saboreia o passado

Por volta de 1934 – um dos meus irmãos nascera no começo desse Verão – Moledo praticamente não existia. O Minho, como hoje o leitor o conhece, não existia ainda. Eu tinha 13 anos e recebera uma bicicleta azul, soube depois que importada de França. A esta distância, recordo apenas como o Verão passou e chegou um Outono de nevoeiro que cobria a Foz que emocionava o velho Doutor Homem, meu pai. Os verões desses anos eram curtos e tépidos como uma folha incandescente do calendário. A metáfora não serve para explicar a sensação, mas lembra uma época: verões curtos, sombras de árvores, Ponte de Lima isolada do mundo e ouvindo rádio em ondas curtas num aparelho de válvulas que relembrava o nascimento do século. A família estava ainda em formação e o dr. Salazar assistira a uns desfiles no Tejo para relembrar o brilho de uma pátria convertida ao ditador.

Passados muitos anos, Moledo é uma pátria pessoal de que o país se evadiu. A minha sobrinha Maria Luísa educa os seus filhos na presunção de que tem de transmitir-lhes qualquer espécie de amor pelo passado. O assunto enternece-me. Ela é uma mulher deste tempo, fruto da educação liberal com que várias gerações aprenderam a viver no meio da desordem e falta de horários para se deitar à noite. Mas a sua tenacidade lembra uma ternura de romance francês, muito à século XIX, um nadinha melancólica, um nadinha dada à infelicidade. Velho miguelista sem esperança, contemporâneo do Titanic ou da inauguração da estrada marginal de Viana, sinto-me atraído por essa espécie de folhetim que colecciona ilusões e desilusões. Gosto de observar como Moledo – mais do que a ordem, o passado, a honorabilidade da velha praia para onde fomos transportados com manta e fato de banho, entre famílias que anualmente se deslocavam para venerar o iodo e as neblinas matinais – resiste à passagem e às reviravoltas.

Dona Elaine, a governanta deste eremitério, continua a achar que Moledo é a praia dos ricos. Das colinas de Reboreda, de onde partiu para o Rio de Janeiro com os pais emigrantes, Moledo era o reduto de uma aristocracia balnear que artistas como António Pedro ou Ruben Andersen Leitão interpretaram depois: o que a terra oferecia era uma beleza que não desistia de sê-lo. A sua excentricidade era tão natural aqui (num clima excêntrico) como os hibiscos que cultivo na varanda, à sombra dos pinhais. Por isso relembro 1934 e os anos antes da idade adulta. Na altura, Moledo praticamente não existia; é uma terra para a idade adulta, para o coração que amadurece e aprende a saborear o passado.

in Domingo - Correio da Manhã - 8 Agosto 2010