tag:blogger.com,1999:blog-216064932024-03-13T00:50:04.845-01:00António Sousa HomemEm certos aspectosUnknownnoreply@blogger.comBlogger346125tag:blogger.com,1999:blog-21606493.post-30535569817213744272012-10-07T20:51:00.000-01:002012-10-07T20:51:16.883-01:00Leituras de Verão e do breve Outono<br />
<div class="MsoNormal">
Durante o Verão, os areais de Moledo assemelham-se – já o
referi nestas crónicas há uns anos – a uma assembleia magna da Academia Nobel.
É um momento de felicidade verificar que a competição entre páginas de papel e
grãos de areia permanece inalterada desde há anos; os romances de praia deviam
ser classificados como a categoria de monumento nacional no seu conjunto,
independentemente da sua qualidade ou da forma como são lidos. Há, aqui, duas
opiniões distintas: a minha sobrinha Maria Luísa insiste em que as dunas de
Moledo, a coberto da ventania, são recantos prodigiosos que poderiam ser
patrocinados por qualquer biblioteca; a Dra. Celina, a nossa bibliotecária de
Caminha, sorri à ideia porque não se imagina a distribuir cotas de livros a
leitores renitentes que os manchariam de bronzeador ou lhes surripiariam as
páginas. </div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O velho Doutor Homem, meu pai, não era um curioso da
genealogia mas apreciava, como todos os Homem, momentos de maledicência.
Recordo-o sentado na sua cadeira de praia, debaixo de um toldo de riscas azuis,
a ler uma genealogia novecentista em busca das origens de um capitão-mor da
Paraíba que casara com uma senhora de Darque, onde vivera nas penumbras da Casa
de Bragança, que ali tinha jurisdição. Duvido que a leitura tivesse grande
interesse para os seus padrões literários, mas assemelhava-se um pouco às
minúcias que ainda hoje se discutem sobre a relação entre Thomas More e
Henrique VIII. A questão elucidou-o afinal acerca das origens de um casarão de
Santa Cristina de Malta, de onde se via o mar de Vila do Conde – como convinha
a um torna-viagem do Pernambuco, onde (no Recife) fora livreiro depois de
escolhidos os vencedores da batalha de Guararapes. Ao fim da tarde, munido
desse manancial de informações inúteis, o velho Doutor Homem, meu pai,
considerava o seu dia bem passado.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Duvido que hoje alguém escolha a ‘Genealogia das Famílias
Santomenses’ para apimentar os seus dias de época balnear, a menos que seja
amigo do Dr. Jorge Forjaz, que se dedicou ao assunto com bravura. Por agora, os
areais despedem-se dos romances de ocasião, lidos durante o Verão. Nestes
derradeiros sábados de sol há na praia um resto de vapores literários, como
sustenta Maria Luísa; as capas, já gastas, revelam gostos sem pretensão e horas
de leitura amena. A brisa do crepúsculo já exige um agasalho e não favorece nem
a leitura de jornais nem a erudição do velho Doutor Homem, meu pai. Gosto,
nestas ocasiões, de ver passar as bicicletas rente à respiração das ondas. </div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-size: x-small;"><i>in Domingo</i> - Correio da Manhã - 7 Outubro 2012</span></b></div>
Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-21606493.post-17966309750797343582012-09-30T22:38:00.000-01:002012-10-02T22:39:37.395-01:00Os guarda-chuvas de Outono<br />
<div class="MsoNormal">
Nenhuma crónica, comentaria o velho Doutor Homem, meu pai,
poderia começar com a expressão “a chegada do Outono”. Um mínimo de sentido
crítico iria relegá-la para a ordem das redacções da escolaridade obrigatória –
que, na época, não existia. Um enorme conjunto de expressões e de metáforas e
imagens obrigatórias fez a felicidade da “literatura escolar” (o arvoredo era
obrigatoriamente “luxuriante” e o amor fraternal passava sempre por
“comovente”), tal como hoje são repetitivas as fórmulas das notícias das televisões.
O nosso habitual fornecedor de águas de Melgaço também acha que tem de
“implementar” um novo “sistema de distribuição” quando quer dizer, com
exactidão, que vai passar a entregar a caixa quinzenal às sextas-feiras em vez
de o fazer às terças. </div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Mas a verdade é que o Outono apareceu de repente. Ao fim de
semana, as dunas de Moledo são ainda um lugar de passeio, mas a foz do Minho, à
direita, ao longe, assemelha-se aos pequenos estuários enevoados da costa de
Biarritz, transformando a nossa província numa réplica do cosmopolitismo
romântico do tempo dos meus pais. A minha sobrinha Maria Luísa escolhe as
margens do Minho, em Caminha, para marchas matinais entre os amieiros e
choupos, ao sábado. Ela julga que os passeios a pé são tónicos para o resto do
dia (e mesmo da semana) e eu acompanho-a por vezes, à distância, percorrendo
cem metros no mesmo tempo em que ela perfaz, ao cronómetro, um ou dois
quilómetros de passo acelerado. </div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O velho Doutor Homem, meu pai, também acreditava nas
virtudes curativas dos passeios a pé, mas vestia-se como um elegante para subir
e descer a rua dos Clérigos. A vinda do Outono significava, para aquele bom ‘dandy’
portuense que sonhava viver em Inglaterra, o regresso da roupa de meia estação,
um figurino que hoje não existe mas que, na época, significava o uso de colete
ou de tweed, e a companhia de um guarda-chuva previdente. Hoje, em vez de mudar
de roupa, as pessoas lamentam-se pelas correntes de ar que vagueiam ao longo da
costa galega. </div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
A ausência de guarda-chuva é o que distingue este tempo da
época em que a meteorologia era tão irregular como a chegada do comboio de
Viana. O velho Doutor Homem, meu pai, acreditava que o uso de guarda-chuva era
um sinal de resignação diante das imprevisibilidade dos Elementos (que passavam
por um período de descoordenação durante as primeiras semanas de Outono) e uma
tentativa de desacreditar injustamente o Dr. Anthímio de Azevedo que, na
televisão, anunciava ‘o tempo’ para o dia seguinte. </div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-size: x-small;"><i>in Domingo</i> - Correio da Manhã - 30 Setembro 2012</span></b></div>
Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-21606493.post-23663516330259412032012-09-23T00:10:00.000-01:002012-09-23T00:10:00.217-01:00Lições básicas de economia política<br />
<div class="MsoNormal">
O
velho Doutor Homem, meu pai, passou a maior parte da sua vida a tratar de
segredos de direito bancário, uma especialidade pouco romântica, pouco popular
e nada literária. Eu, seu filho mais velho, segui as suas pisadas por preguiça
– na época, o sistema bancário tinha alguma coisa do século XIX, e os seus
escritórios e dependências albergavam retratos de gente ilustre que o tinha
inaugurado. </div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O
que acontece, pelas minhas memórias – e pelas que roubei ao velho Doutor Homem,
meu pai –, é que desde meados do século XIX Portugal pouco mudou. Tentei
explicar à minha sobrinha Maria Luísa que devia ler Oliveira Martins com o
argumento de que o seu ‘Portugal Contemporâneo’ era uma novidade editorial de
fôlego. Ela compreendeu a ironia: o país já não era uma terra de velhos e
austeros comerciantes ou prestamistas, mas continuava a ser administrado pelos
herdeiros do Constitucionalismo que ganharam dinheiro com as obras públicas de
Fontes Pereira de Melo, que ganharam dinheiro com o comércio de víveres e de
influência durante a República, que ganharam dinheiro com o regime do dr.
Salazar e que, finalmente, retomaram os seus direitos históricos com a
democracia de hoje. Esta visão, simples e injusta, merece-lhe aplauso. Por
instantes viu-me com um votante potencial do Bloco de Esquerda, preparado para
aclamar o casamento entre cavalheiros para fumar haxixe nas dunas ao fundo dos
pinhais de Moledo.</div>
<div class="MsoNormal">
Remediado
e manhoso, tanto como ignorante e vaidoso, o Portugal do Constitucionalismo
prolongou-se até hoje. A Tia Benedita, a matriarca miguelista da família, que
não estudou economia nem chegou a conhecer o FMI, percebeu que ao velho regime
dos seus avós se tinha sucedido um casamento de conveniência entre os negócios
do Estado e os dos prestamistas e negociantes, o que garantiria uma alegre
corrupção colectiva – mas sem alma, sem espírito e sem travão a emprestar-lhe
alguma decência. </div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Os
Homem de várias gerações compreenderam esta arquitectura e viveram nas suas
margens, dedicados a sobreviver e a cuidar do colesterol alto, mal ele foi
inventado. Pertenciam a outro mundo. Ganhavam a vida, guardavam os retratos e
mantiveram reunidas as peças de Companhia da Índias no velho casarão de Ponte
de Lima. Mas não confiavam. Maria Luísa, a esquerdista da família, vê nisto um
sinal de honradez delicada. Não é bem isso; é, muito mais, o pessimismo ardente
de uma família de derrotados que vê o seu país entregue a comerciantes dos
sertões. Não é tão nobre, evidentemente, mas serve para dizer que já contávamos
com esta gente.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-size: x-small;"><i>in Domingo</i> - Correio da Manhã - 23 Setembro 2012</span></b></div>
<!--EndFragment-->Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-21606493.post-41368530424523694352012-09-16T23:28:00.000-01:002012-09-17T23:28:40.987-01:00Uma solução: proibir os adjectivos<br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">O
país, pequeno e desajeitado, nunca teve permissão para solucionar as suas
crises financeiras, limitando-se a sofrer as consequências ou da sua irrisão ou
do seu descuido. Ao folhear os jornais de outros tempos aflige-me o mesmo
conjunto de patetices que me ocuparam em outros anos e em outros séculos –
partindo do princípio de que atravessei dois séculos, pelo menos, e de que
conservo uma boa biblioteca sobre a primeira metade do século XIX. O problema
principal é a falta de dinheiro. Qualquer benevolente e paciente leitor destas
crónicas compreende que não se ministram aqui lições de economia – e que a
própria economia sai maltratada deste eremitério de Moledo, de braço dado com a
astrologia, de quem a suponho irmã.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">Acontece
que falta dinheiro e que o dinheiro provém da actividade económica que nós não
temos. O desastre é antigo. O velho Doutor Homem, meu pai, propôs várias vezes
que se levasse o Constitucionalismo a tribunal, arrastando consigo as
burguesias que viveram à conta do Estado e dos seus favores; mas eram coisas de
um teimoso. País pequeno e desajeitado, gastador do que nunca teve, nem as
burguesias aproveitaram a luz das nossas grinaldas (para a colocarem a render),
nem os heróis de antanho se serviram do engenho das nossas burguesias para dar
descanso aos cabedais que não tinham. Este divórcio foi-nos fatal. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">A
minha sobrinha acha que sou arrevesado nesta matéria e que mais vale dizer que
o país não tem solução. Não é totalmente verdade; apenas em parte. Da falta de
dinheiro provêm quase todos os nossos males; e os restantes resultam da
arrogância dos herdeiros do vintismo e das revoluções de juristas, incluindo a
República. Ao vê-los falar na televisão, no intervalo das telenovelas de Dona
Elaine (a governanta e guardiã de Moledo), pergunto-me de onde lhes vem tanto
conhecimento sobre a arte de criar riqueza onde não há trabalho, invenção,
loucura, aforro e sensatez – tudo ao mesmo tempo, porque tudo é necessário para
manter um país decente.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">Mas
falta-nos decência. Mais de metade do país, dizem-me os meus sobrinhos, vive a
dar ideias no Facebook em vez de vendê-las a quem as achar genuinamente úteis
ou aproveitáveis para benefício das nossas províncias. Não me parece que o
consigam. O velho Doutor Homem, meu pai, gostaria de ser ministro durante uma
semana para impor a proibição de usar adjectivos durante certa temporada. Ao
ver o que dizem os herdeiros do constitucionalismo e da República, isso
providenciava-nos alguma presciência e melhorava a nossa saúde mental.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><b><span style="font-size: x-small;"><i>in Domingo</i> - Correio da Manhã - 16 Setembro 2012</span></b></span></div>
Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-21606493.post-64259031630908213352012-09-09T00:10:00.000-01:002012-09-09T00:10:00.616-01:00Como a idade passa por nós<br />
<div class="MsoNormal">
Não
há grande metafísica nisto. Simplesmente, envelhece-se porque se envelhece;
ficamos mais velhos porque ficamos mais velhos. E creio, ainda hoje, que é a
única grande sabedoria que vale a pena destacar – aprender a ficar velho,
aprender a envelhecer, aprender a aceitar a “vinda da idade”.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O
assunto, expliquei já ao leitor, não me mobilizou para lá do aceitável. Na
família, sempre se pensou que eu nascera já com uma idade aceitável, preparado
para encarar a passagem dos anos com a tranquilidade de um homem maduro que
ultrapassou a adolescência sem desejar pôr bombas na rua ou experimentar drogas
em Katmandu (falo por ouvir dizer). Não é totalmente verdade: houve sempre um
pouco de preguiça a ajudar; e de conformismo, naturalmente. No meu tempo de
adolescente deveria, portanto (recordo a sugestão atrasada da minha sobrinha
Maria Luísa), ter-me contentado em permanecer naquele estádio puramente animal,
praticando râguebi e vigiando as belas de então, que alegravam o limbo de
qualquer jovem candidato a um casamento mediano. Não casei. Não envelheci no
meio de ruído nem de alegrias familiares. Não constituí, como diz a Pátria
inteira, uma família.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O
mundo de hoje valoriza a adolescência exactamente pelos mesmos motivos que me
levam a colocá-la no seu lugar, apenas no seu lugar, arrumada entre os livros
de Walter Scott e os álbuns das primeiras viagens a Espanha. Não vejo que
felicidade possa existir da visão de um pobre ser de quinze ou dezasseis anos,
condenado a mudanças genéticas e fisiológicas ou a erros fatais de gosto e de
penteado. Portanto, não aprendi propriamente a envelhecer, mas a verificar a
passagem do tempo, descendo com ele (ou subindo) os degraus da idade, sem
dramas nem ilusões românticas. O mundo – isto tudo – mudou muito nos últimos
anos e, por vezes, eu sinto-me um plácido reservatório de antiguidades, ou
mesmo de velharias. Há, como se sabe, uma diferença entre as duas coisas. Eu
fico entre ambas, creio que pairando, aproveitando a vaidade que a velhice não
torna escandalosa mas que o bom senso não recomenda – por não ser boa para a
saúde.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Também
não tenho uma visão romântica sobre a velhice nem sobre o envelhecimento. Somos
muitos, demasiados – os velhos. Os meus irmãos explicam-me que isso constitui
um desastre para as contas do Estado, para o futuro da pátria e para o
bem-estar dos vindouros. Tento dizer-lhes que isso se deve ao mito da eterna
juventude muito em voga hoje em dia: pessoas que querem continuar jovens,
temendo o envelhecimento. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-size: x-small;"><i>in Domingo</i> - Correio da Manhã - 9 Setembro 2012</span></b></div>
<u4:p></u4:p><!--EndFragment-->Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-21606493.post-1658803093497422892012-09-02T16:42:00.000-01:002012-09-03T16:44:29.182-01:00A nova insónia dos portugueses<br />
<div class="MsoNormal">
Dona Elaine, a governanta deste eremitério, é a mais
frequente utilizadora do aparelho de televisão que foi actualizado no ano passado,
depois de muita insistência de parte dos meus sobrinhos. Eles acham que um
velho conservador deve actualizar-se em matéria de tecnologia mesmo que a não
use, pela simples razão de ser visitado, durante o Verão, por uma horda de
sobrinhos que bivacam na casa de Moledo como supõem que Lawrence da Arábia se
instalava nos declives do deserto. A única diferença em relação a um
acampamento no deserto é que, além da areia (que só existe dos pinhais para
baixo, na direcção do mar), eles assistem a vários programas de televisão que
desconheço mas que, na generalidade, começam por volta da meia-noite, hora a
que, em geral, já não estou acordado.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
A minha vida começa cedo, a tempo de tomar o pequeno-almoço
na cozinha e antes de a neblina de Moledo levantar. Por vezes, Dona Elaine tem
o aparelho de televisão ligado a essa hora e eu surpreendo-me porque, no dizer
dos meus sobrinhos, continuo a pensar que as emissões abrem ligeiramente ao fim
da tarde e terminam com o hino nacional. Acontece que, para um velho que atravessou
sofrivelmente o século passado e está inexplicavelmente vivo neste, a televisão
está ligada ao que antigamente se chamava ‘serão’. Viam-se as notícias (que
eram bem lidas, mesmo que maçadoras), tomava-se boa nota das observações do Dr.
Anthímio de Azevedo sobre meteorologia – e o resto do tempo televisivo era
ocupado com programas geralmente desinteressantes, salvo quando se inventou o
‘Zip Zip’ (que provocou no velho Doutor Homem, meu pai, um acesso de
esquerdismo debelado meses depois) ou uma coisa chamada ‘selecção nacional’
jogava futebol. No entanto, a misantropia dos Homem não chegou ao ponto de
desconhecer, ao longo dos tempos, toda a miséria que acontecia na pantalha do
televisor que era substituído todas as décadas, suponho.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
As telenovelas portuguesas, no entanto, inquietam-me
bastante. Dona Elaine não perde uma e conhece os nomes das personagens como o
Tio Alberto conhecia os apelidos dos cantores de ópera do seu tempo. Eu vejo de
vez em quando (de mês a mês) um episódio e toda a gente me parece triste,
zangada ou a necessitar de conserto gramatical. Quando vou para o quarto,
procurando lembrar-me da passagem do livro que me espera desde a noite
anterior, Dona Elaine está ainda acordada e concentrada como se seguisse a vida
do Quixote. Dizem-me que os portugueses se deitam mais tarde agora, por causa
das novelas. Isto explica muitas coisas.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-size: x-small;"><i>in Domingo</i> - Correio da Manhã - 2 Setembro 2012</span></b></div>
<!--EndFragment-->Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-21606493.post-70087300126326934912012-08-26T00:10:00.000-01:002012-08-26T00:10:00.098-01:00Quadro décadas de discrição e mistério<br />
<div class="MsoNormal">
O
Tio Alfredo Augusto regressou a Portugal em Setembro de 1970 vindo do Rio de
Janeiro. Tinha sessenta e cinco anos e era jovem o suficiente para acreditar
que tinha ainda tempo para gozar alguns anos na quinta que comprara nos
arredores de Afife, voltada para o mar, protegida por pinheiros e gigantescas
sebes centenárias. Vivera a maior parte dos seus quarenta anos brasileiros no
Pernambuco – mas, antes de regressar ao Minho, como o faziam os personagens de
Camilo, quis passar uma temporada em Copacabana. Não para “gozar a vida” mas
para pôr os papéis em ordem. Na verdade, como já expliquei antes ao leitor
benevolente, o Tio Alfredo foi o único agricultor da família; isso não fez dele
um homem mais pobre ou desconsiderado. Na altura, a cana de açúcar e o café
renderam-lhe o suficiente para montar, em Afife, uma espécie de “dependência do
sertão”, como pensaria a Tia Benedita, que morrera dois anos antes, em pleno
Verão, convencida de que o mundo estaria prestes a acabar, cercado de
imoralidade e de bolchevismo. </div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O
Tio Alfredo, pelo contrário, nunca acreditou no fim do mundo propriamente dito;
costumava dizer que já o tinha visto nos trópicos: era vasto, quente, pobre, e
não era o lugar ideal para envelhecer – razão por que regressou para junto do
mar do Minho, acreditando que o seu coração já não sofria das desventuras dos
vinte e seis anos, idade em que atravessou o Atlântico em busca de fortuna e de
linimento para um desgosto de amor.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O
velho Doutor Homem, meu pai, era céptico sobre essa matéria. Ele tinha a
certeza de que os desgostos de amor já não existiam naquela época, mas
conformou-se com a tradição oral da família, que emprestava ao Tio Alfredo uma
espécie de aura literária – e o ligava a um segredo, nunca desfeito, que
atravessou quatro décadas de discrição e mistério, coisa só possível nas
famílias de antigamente, que (pelo menos em voz alta) ligavam pouco à
metafísica e aos amores alheios. </div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
De
tempos a tempos, chegavam-lhe pelo correio uns maços do ‘Diário de Pernambuco’;
lia-o na varanda, ou junto à lareira, como se acompanhasse os negócios locais
do Recife ou apreciasse, de longe, o curso das águas sujas do rio Capibaribe. O
seu irmão Alberto, bibliófilo e gastrónomo (a sua maior glória era ter servido
sardinhas fritas e ovos com chouriço a D. Ramón Otero Pedrayo, o magnífico
autor de ‘El mesón de los Ermos’) de São Pedro d’Arcos, dizia que ali estava um
português inteiro e conforme a regra: emigrante em toda a parte, saudoso de
tudo o que recordava.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-size: x-small;"><i>in Domingo</i> - Correio da Manhã - 26 Agosto 2012</span></b></div>
Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-21606493.post-1826108989407652602012-08-19T03:35:00.000-01:002012-08-20T03:36:53.669-01:00Lições de Economia Política no Minho<br />
<div class="MsoNormal">
A minha sobrinha Maria Luísa desistiu de ir ao Brasil e
passou as manhãs das duas primeiras semanas de Agosto (vigiando os filhos e
folheando uma pilha de romances) sentada no areal de Moledo. Conseguiu apenas
ler alguns dos livros; quanto aos filhos, deixou que eles experimentassem a
noção de “livre arbítrio”, tão cara a teólogos e desprezada pela puericultura:
sabendo nadar, temendo o perigo como qualquer ser humano, nenhum mal maior
podia acontecer-lhes – é a lição de Dona Ester, minha mãe, que passa de geração
para geração. A minha presença na praia já não tem o horário de antigamente,
quando às dez e meia da manhã o mar do Minho se iluminava o suficiente para
podermos falar de “época balnear”. Com o toldo alugado à época, apareço
ligeiramente depois dessa hora, para conferir que há coisas que, felizmente,
não mudaram ainda. É a felicidade de um conservador.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
As férias, este ano, decorrem com tranquilidade. As minhas
irmãs anunciaram que não vão ao estrangeiro (elas tinham descoberto a
existência de ‘spas’ pelo mundo fora), a maior parte dos meus sobrinhos
regressou a Moledo “com a crise”, e Maria Luísa não compra todos os jornais que
cabem na sacola de praia.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, tem
desenvolvido bastante os seus estudos de ciência política – e decretou que, com
a crise, regressou algum bom-senso à vida portuguesa. Tento alertá-la para o
drama da economia, mas a sua sabedoria minhota não se compadece e acha que
“temos de aprender a lição”. Ela tinha visto, na televisão, umas pessoas que se
queixavam de que este ano tinham cancelado as suas férias no estrangeiro, e que
estavam obrigadas a dividi-las entre um tempo em casa e outro “por aí”, na
praia, no campo, nas cidades ou nas províncias. </div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Dona Elaine é católica; acredita no juízo final e,
desconfiando dos economistas, numa espécie de justiça que mais tarde ou mais
cedo chega para colocar as coisas no seu devido lugar. De certo modo, fica
satisfeita com as coisas da maneira que estão. Ela recorda-se dos tempos de
penúria e a mãe testemunhou o racionamento dos tempos da guerra, nos anos
quarenta, quando não havia férias pagas. </div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“O senhor doutor há quanto tempo não vai ao estrangeiro?”,
perguntou ela. Tentei explicar-lhe que sou um caso à parte, que a idade só me
permite atravessar a fronteira de Valença, que estou de férias há alguns anos,
e que Moledo é uma espécie de centro geodésico (com perdão de Vila de Rei) do
meu mundo. </div>
<div class="MsoNormal">
“Pois sim”, voltou ela. “Hoje temos bifes de cebolada.”</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-size: x-small;"><i>in Domingo</i> - Correio da Manhã - 19 Agosto 2012</span></b></div>
Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-21606493.post-69328623436064257452012-08-12T03:24:00.000-01:002012-08-20T03:34:14.656-01:00A doutora Teresa veio do Algarve<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit; line-height: 115%;">No domingo da semana passada tivemos de cumprir a
sereníssima obrigação mensal de almoçar no restaurante Ancoradouro. A operação
exige alguns cuidados durante o Verão porque, se os princípios se fizeram para
serem cumpridos, também é verdade que não se podem desperdiçar "manhãs
gloriosas" de praia como as dos últimos dias; é necessário, portanto,
conciliar o dever de parte da família se apresentar junto do toldo alugado à
época desde há cerca de cinquenta anos sem interrupção, com o compromisso de
nos apresentarmos à mesa a horas consideradas regulamentares. Os Homem são
gente exímia na arte do compromisso; às duas horas lá estávamos, em número de
oito, pedindo ou o gin inicial (a minha sobrinha Maria Luísa, por exemplo) ou a
Água de Melgaço com rodela de limão, deixando para trás uma manhã gloriosa de
praia.<span style="font-size: small;"><o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit; line-height: 115%;">A expressão "manhãs gloriosas de praia"
não me pertence; foi a dra. Teresa, acabada de regressar das suas férias no
Algarve, que a usou para as descrever, e certamente para as distinguir das
manhãs de Moledo. "Claro que não se compara", como a dra. Teresa acrescentou,
antes de regressar às colinas de Venade, mesmo acima de Caminha, onde as
agruras do clima não se pressentem como aqui, diante da Ínsua e do vulto de
Santa Tecla.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit; line-height: 115%;">A verdade é que, quer durante a minha juventude e
quer durante a minha idade adulta, a praia não tinha existência social
propriamente dita. Estava a meio caminho entre o sanatório e o ginásio, como
nos "romances termais" de final de século, e envolvia-a uma aura de
romantismo fora de época, pouco português e certamente nada burguês. Dona
Ester, minha mãe, achava que frequentar a praia servia de terapêutica do corpo
e da alma, em simultâneo. Enquanto o meu pai ficava por algumas horas entregue
à sua biblioteca, "para aproveitar parte das férias", ela lançava-nos
às ondas frias e coroadas de sargaço, na crença de que corpos bronzeados
resistiam melhor às gripes, e de que o iodo era a essência requerida para
alimento das almas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit; line-height: 115%;">Não, Moledo não tem a doçura das águas algarvias. O
mar de Moledo desafia a consolação requerida por corpos fatigados por um ano de
trabalho. Se há época balnear, como se dizia no linguajar de antanho, é aqui
que ela nasceu, entre o perfume dos pinhais e a ventania que varre as ondas. De
vez em quando há uma manhã gloriosa de praia rasgando a neblina que cobre as ondas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit; line-height: 115%;">Tudo são mitos, explicava o velho Doutor Homem, meu
pai, sorrindo à ideia de explicar o apelo de Moledo. No fundo, foi em Biarritz,
e não nos trópicos, que ele pediu Dona Ester em casamento.<span style="font-size: small;"><o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="line-height: 115%;"><b><span style="font-family: inherit; font-size: x-small;"><i>in Domingo</i> - Correio da Manhã - 12 Agosto 2012</span></b><span style="font-family: 'Times New Roman', serif; font-size: small;"><o:p></o:p></span></span></div>
Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-21606493.post-8045238985844103002012-08-05T00:10:00.000-01:002012-08-05T00:10:00.512-01:00O retrato de um cavalheiro discreto<br />
<div class="MsoNormal">
O velho Doutor Homem, meu pai, era advogado e creio que não leu
Montaigne. As suas leituras, a partir de certa altura, confinavam-se ao
essencial de um espírito que tinha feito as suas escolhas e que raramente
precisava de sair delas. Ele morreu, serenamente, em Novembro de 1974,
lamentando que o dr. Palma Carlos não tivesse continuado primeiro-ministro e,
ao mesmo tempo, confirmando que “o coronel do monóculo” era vaidoso demais para
um país tão pequeno. Por várias vezes tivemos de lembrar-lhe que “o coronel do
monóculo” era um general, mas a informação não surtiu efeito, despromovendo-o .
Este género de teimosia era comum na família – a Tia Benedita acreditou até ao
fim da vida (deixou-nos no interessante Verão de 1968) que o dr. Afonso Costa
regressaria para perseguir os padres e roubar os tesouros das igrejas do Minho.
Depois de 1937 também por várias vezes a informámos do falecimento, em França,
do ditador da República. Em vão. Com ela, todo o cabido da Sé de Braga esteve
sempre em perigo, correndo o risco de ser passado à baioneta às mãos do
demagogo.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Refiro Montaigne porque o conjunto de interesses do velho
Doutor Homem, meu pai, era tão variado como o foi a leveza da sua vida. “As
almas mais belas”, dizia o mestre francês, “são as que têm mais variedade e
flexibilidade”. Ao passar os olhos pela sua biblioteca (que herdei aos poucos e
desorganizei com aplicação), revejo um homem que alimentou uma grande
curiosidade pelo mundo – e cuja grande ambição era ler os editoriais do ‘The
Daily Telegraph’ nunca com menos de dois dias de atraso para não ficar
desactualizado em matéria de doutrina. Essa curiosidade fez dele uma espécie de
“homem do Renascimento”. Isso fez dele um ser acessível e bem-humorado, tanto
quanto disponível para as descobertas e desvarios da humanidade. A sua
capacidade de escandalizar-se era mínima; aceitava com tranquilidade os
divórcios da família (que se repetiam com regularidade) e tinha uma fé
ilimitada na nossa competência para cometer erros amáveis que depois seriam
corrigidos a expensas próprias. A esta distância recordo-o como um cavalheiro cordato
que não gostava de fatos assertoados nem de trinados do fado português;
sobrevivendo a Dona Ester, minha mãe, tentou ser um solitário, sem o conseguir.
Perseguiam-no a música, a leitura, a paixão por Inglaterra e o riso que o fazia
desconfiar do país, que ele achava inteiramente ingovernável enquanto não
existissem uma câmara dos Lordes – e um Speaker’s Corner na esquina da Avenida
dos Aliados.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-size: x-small;"><i>in Domingo</i> - Correio da Manhã - 5 Agosto 2012</span></b></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-21606493.post-3556640650691800162012-07-29T15:10:00.000-01:002012-08-02T15:16:45.615-01:00Um personagem de romance esquecido<br />
<div class="MsoNormal">
Das nossas aventuras pelo império sobrou pouco. Felizmente,
o velho Doutor Homem, meu pai, impediu o tio Henrique (que peregrinou por
Angola, Moçambique e passou uma temporada na Índia) de compor uma obra
sinfónica sobre o tema, convencendo-o a melhorar a sua perícia do oboé apenas
num raio confinado à sua casa nos arredores dos Arcos de Valdevez, onde os seus
antepassados se tinham dedicado a envelhecer felizes sem grandes preocupações
musicais.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
De resto, os sertões de África nunca mais inspiraram
qualquer outro talento dos Homem; e, tirando uma ou outra recordação das
colónias, como uma mesa de pau preto ou a malária do tio Henrique, a nossa
ligação ao império manteve-se durante anos apenas graças ao caril servido
periodicamente a pedido de Dona Elaine, que, não sabendo distinguir Goa de
Nagar Aveli, ainda ouviu mencionar vagamente o Estado Português da Índia.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Os despojos do tio Henrique, valha a verdade, eram dignos de
um romancista; limitaram-se a uma maleta de couro antiga onde cabiam uma dúzia
de camisas brancas e imaculadas, feitas por medida no alfaiate Edward Loureiro
& Sons, Goa; uma navalha de barbear com cabo de marfim; um horário de
comboios africanos (‘East African Railways & Ship Lines’) que por certo
nunca lhe foi de grande utilidade; dois baralhos de cartas; um pequeno manual
de contabilidade doméstica publicado nos anos trinta pela Livraria Arnado; e um
cachimbo demasiado grande para ser levado a sério.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Estes bens, dispersos e irrelevantes, foram guardados pelo
seu irmão, o meu bom tio Alberto, bibliófilo e gastrónomo de São Pedro de
Arcos, e depois da morte deste confiados ao casarão de Ponte de Lima, onde
repousam no meio de velharias que o tempo há-de devorar.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Tenho pelo tio Henrique uma admiração vaga, que nunca deixou
de ser adolescente nem romântica. Imagino-o na varanda da sua casa dos Arcos de
Valdevez, atormentado pelas doenças que trouxe do Índico, sonhando ser um
coronel inglês das Índias retirado para escrever as suas memórias. Nem a idade,
nem o mal de Parkinson, nem as gripes constantes lho permitiriam. Por vezes,
naquela tranquilidade das montanhas do Minho, devia ouvir, sempre e apenas na
sua cabeça, os acordes triunfais da sua sinfonia sobre as campanhas do Ultramar.
Mas o resto da família não mostrava grande compreensão, tirando o tio Alberto,
que fez do seu irmão mais velho um personagem de romance. Mas esse romance
teria de ser escrito noutra língua e noutro lugar. Ninguém imagina que
tivéssemos sido heróis em algum lugar.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span style="font-size: x-small;"><b>in Domingo</b> - Correio da Manhã - 29 Julho 2012</span></i></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-21606493.post-31265429830760151092012-07-22T11:39:00.000-01:002012-07-24T11:39:52.233-01:00Uma família minhota e a doença do cinismo<br />
<div class="MsoNormal">
O cinismo é uma das velhas árvores genealógicas da família.
Digo-o assim para que não pareça que me refiro a um vício; o riso de Voltaire
devia ter um antídoto nas velhas cãs do conservadorismo minhoto – e se a ala
progressista (uma espécie de conciliábulo de clones do dr. Mário Soares, mas
numa versão cultivada e com algumas leituras) das nossas províncias se excitava
com o autor do ‘Cândido’, isso não se devia às virtudes do filósofo, mas ao
facto de irritar os abades e fazer corar as famílias. </div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Tirando as indicações dos abades, justamente, a Tia Benedita
sabia de Voltaire o que tinha sido publicado nas páginas do ‘Aurora do Lima’ ou
do ‘Cardeal Saraiva’, e o que um primo do Conde d’Aurora (saudoso autor do
‘Roteiro da Ribeira Lima’), correspondente do meu avô, deixara numa conferência
dos anos quarenta. Isso era suficiente para acreditar que o seu sobrinho, o
velho Doutor Homem, meu pai, tivera algum dia simpatias maçónicas.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Seja como for, o velho Doutor Homem, meu pai, apreciava
Voltaire. Ele acreditava que todos temos um pouco da mediocridade do doutor
Pangloss, embora preferisse a conclusão derradeira, a de que “devemos cultivar
o nosso jardim”, uma espécie de eco do seu mestre Montaigne. Mas se Montaigne
(tal como Samuel Johnson ou Samuel Pepys) se reservava para os grandes
momentos, que eram raros e precisavam de auditório, o cinismo alastrava com
mais facilidade porque tinha, digamos, “aplicações práticas”. </div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O principal alvo do cinismo era “a política”, esse mundo
desagradável que tanto produzia catástrofes como pantomineiros, sendo que a
família sempre optou pelos últimos. Afastados da “política” desde a partida do
príncipe proscrito para Génova, abandonando os areais de Sines aos
maltrapilhos, os Homem consideraram largamente a hipótese de emigrar. Um sopro
de sensatez impediu-os; de tempos a tempos (como no caso do Tio Alfredo, que
fez fortuna no Pernambuco), um deles partia, mas por razões puramente
românticas. O desinteresse era tal que o pai da Tia Benedita, quando dois
enviados de Paiva Couceiro o visitaram a pedir ajuda para a incursão de
Vinhais, recomendou-lhes que tivessem juízo e se vestissem mais a rigor. O
gesto nunca foi recordado nem esquecido; é apenas uma das nódoas que macula a
honorabilidade da genealogia.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Isto faz de nós gente pouco recomendável em matéria de
virtudes cívicas. Pagar impostos, desconfiar, sorrir quando se ouvem elogios às
virtudes da democracia. É este o nosso estado natural enquanto não chega o
Verão. Depois, pioramos.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-size: x-small;"><i>in Domingo</i> - Correio da Manhã - 22 Julho 2012</span></b></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-21606493.post-28961135939766753322012-07-15T14:25:00.000-01:002012-07-16T14:27:24.584-01:00O passado em Moledo e sem remissão<br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">Passados
mais de cinquenta ou sessenta anos recordo alguns dos gestos com que a minha
vida ficou marcada: o de escolher o lado da varanda onde o sol bateria mais
tarde, o de guardar folhetos de cordel comprados nas feiras do Minho, ou, pura
e simplesmente, o gesto do velho Doutor Homem, meu pai, desempacotando os
exemplares do ‘Daily Telegraph’ que chegavam todas as semanas.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">Esse
mundo tem um grau de perfeição que raramente vi repetido mais tarde. Há
excepções: o ruído dos meus sobrinhos chegando para as férias de Verão, a voz
da Dra. Celina subindo as escadas e confirmando que determinado livro existe na
biblioteca de Caminha, a minha sobrinha Maria Luísa quando perde a manha da
política e da sensatez geral – e descobre que havia um mundo antes da
democracia, da televisão a cores e dos romances escritos em conflito com a
gramática. São apenas pormenores, momentos de uma recordação que se esvai e que
pode competir com o arroz de pato da Tia Gabriela ou com a forma como Dona
Elaine comenta, com desvelo, a desorganização da moral e dos costumes de hoje. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">A
minha sobrinha Maria Luísa acha isto o zénite do reacionarismo enquanto tento
explicar que o mundo favorece com apetite e entusiasmo aquilo que é mau e
despreza frequentemente os momentos e os gestos de virtude, mesmo aparente. Ela
não conheceu a Tia Benedita, que via o espírito de Afonso Costa pairar sobre a
Pátria, desejoso de demolir igrejas e pretendendo matar à fome o Príncipe
proscrito. Tentei várias vezes convencê-la de que o senhor Dom Miguel tinha
morrido na Alemanha, junto da Princesa Adelaide, reconfortado e esquecido,
muito antes da República e do exílio do Dr. Cunha Leal em Vigo. Ela não
acreditava. Maria Luísa também não acredita que o mundo se encaminha para a
catástrofe ou para a dissolução, precisamente pelas mesmas razões. Tal como a
matriarca miguelista da família, Maria Luísa acha que todas as coisas têm um sentido.
Tento, com algum esforço melancólico, explicar-lhe que isso não existe. Não
porque lhes falhe (às coisas) um sentido, mas porque existem vários e em
simultâneo. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">É
preciso dizer que Maria Luísa tem pela Tia Benedita, que não conheceu, uma
ternura que ultrapassa a imaginação do leitor, mesmo que continue a imaginá-la
vigiando os costumes da família, convocando os frades de Braga e acendendo
velas pela conversão da Rússia. Vê-a também como uma figura de romance,
espreitando das ameias a dissolução do mundo. Não acho: a Tia Benedita
acreditava que o mundo não tinha solução e limitava-se a fintar-nos.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><b><span style="font-size: x-small;"><i>in Domingo</i> - Correio da Manhã - 15 Julho 2012</span></b></span></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-21606493.post-85755485967510687012012-07-08T00:10:00.000-01:002012-07-16T14:28:38.379-01:00O livro das recordações<span style="font-family: inherit;"><br /></span><br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;">Em casa, o ‘fox
trot’ (em discos, para os gramofones de antanho) está ligado ao tempo em que
perdemos os territórios ocupados pela União Indiana. Na época, o gramofone
estava instalado no móvel de cedro que os antepassados salvaram da revolução
como uma relíquia que nos lembraria o tempo em que tudo ‘estava em ordem’. Pura
ilusão; não havia ordem nesse tempo; apenas teimosia e um certo comodismo.
Antes e depois de 1820 (e, sobretudo, de 1834, data da concessão de Évoramonte)
os Homem seguiram sempre o seu caminho com a impressão de estarem desligados do
mundo e sujeitos apenas às suas obsessões. Até hoje, data em que recordo os
discos de ‘fox trot’, o gramofone inglês, a perda de Nagar-Aveli em 1954 e a
velha sala da casa portuense.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;">Nessa altura,
querendo contrariar a ideia de que estava iminente o fim do mundo, o velho
Doutor Homem, meu pai, lembrou que tudo já estava escrito desde que,
atravessando o longínquo e pedregoso Ipiranga, D. Pedro tinha encerrado a
questão colonial. A Tia Benedita, a guardiã miguelista da família, concordou e,
até ao fim da vida, acreditou que o Ipiranga não era um rio mas uma divisa
moral que assinalava o tempo em que a pátria começava a desmoronar-se (nem as
campanhas de Mouzinho serviram para atenuar o pessimismo da família). Daí até à
chegada do dr. Afonso Costa, as catástrofes iriam suceder-se na sua tábua
cronológica, e mesmo para além dela, até à invenção da mini-saia e à chegada de
padres com barba coimbrã à província do Minho. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;">Nessa altura,
sob os escombros desconhecidos e melancólicos de Dadrá e Nagar Aveli, sempre
desvalorizados diante da futura hecatombe de Goa, eu sonhava ir a Paris e
regressar a Londres para refazer o guarda-roupa e curar-me de males invisíveis.
Dona Ester, minha mãe, queria que eu escolhesse Londres, mas sem o dizer
claramente. Quanto mais longe, melhor. Ela enviara-me já para o Rio, onde
passei três meses como se se tratasse de uma prescrição médica, e, na verdade,
como boa leitora de Júlio Dinis, sempre sonhou com uma nora inglesa, ruiva, sem
bronquites nem medo das praias do Minho. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;">Nem ela o
conseguiu nem eu regressei a Londres nessa altura. Tive de esperar. Passou a
ruína do Império. O meu tio Alfredo regressou do Pernambuco e instalou-se perto
de Afife. O tio Alberto apaixonou-se por uma princesa nas margens do Cáspio. A
tia Benedita partiu, serenamente, num Verão em que mudaram o repertório das
bandas de música de Ponte de Lima. O livro das recordações apenas <span style="font-family: inherit;">fixou o ‘fox
trot’.</span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-family: inherit; font-size: x-small;"><i>in Domingo</i> - Correio da Manhã - 8 Julho 2012</span></b></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-21606493.post-60194184370474609242012-07-01T14:37:00.000-01:002012-07-02T14:37:24.784-01:00Viagem ao passado com as pedras<br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;">O
velho Doutor Homem, meu pai, sentia-se bem nos verões do casarão de Ponte de
Lima, onde apreciava a biblioteca, os discos de Anna Moffo, as trepadeiras e os
dois liquidâmbares fronteiros ao grande portão de ferro da entrada. O resto era
a família, desorganizada e anárquica, desocupada durante aquele tempo
desprevenido, preguiçoso e cheio de gastronomia regional, além desse quadro
bucólico de sobrinhos e netos saltando muros e fugindo dos morcegos. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;">A
melancolia, que era rara, tocava-o na passagem pela costa de Montedor (a falar
verdade, já o tinha tocado antes, nas ondas à vista do Neiva, quando o velho
Ford, carregado de crianças, subia do Porto para as margens do Lima),
suspeitando ao longe a torre do farol, a cuja construção assistiu, espreitando
sobre o manto de sargaço que se espalhava nas praias, rente às dunas que
confinavam com o pinhal da Gelfa. Hoje, quando folheio páginas amarelecidas do
‘Minho Pittoresco’ ou retratos de igrejas em postais ilustrados dos anos
quarenta (havia uma certa inclinação pelas obras de Manuel Fernandes da Silva,
o arquitecto setecentista da região), recordo aquilo que o velho país nos
legou: um mapa de relíquias que não compreendemos. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;">De vez
em quando, no intervalo da canícula, o ramo arqueológico da família partia em
busca de um solar escondido entre a neblina e o verde das colinas (como a Torre
da Quintela, em Nogueira, inclinada para Ponde da Barca, ou o Paço de Curutêlo,
uma espécie de ameia despenteada entre árvores de fruto), de uma igreja que
escapara à protecção do arcebispado, de uma ponte que atravessava um rio no
lugar mais inóspito. Não tentavam compreender as relíquias; limitavam-se a
contabilizá-las como um amealhador incansável e cioso dos seus bens, dispersos
nos taludes da Serra Amarela, nas matas do rio Homem, nos empedrados de Terras
de Bouro ou entre os amieiros do Lima ou do Cávado. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;">Hoje,
tento dispersar essas informações a sobrinhos que chegam a Moledo arrastando
consigo o peso da civilização. Se o iodo não me basta como argumento para
elogiar o mar do Minho, menciono a felicidade de ter encontrado, à vista da
Ínsua, ramagens de ‘Salix arenaria’ ou de cardo marinho ainda em flor. Também
isso não basta. Recomendo então visitas às margens do pequeno rio Âncora com o
argumento de que há águias de asa redonda em volta da Serra d’Arga. Vejo que o
meu deslumbramento não basta; pertencemos, portugueses, a séculos diferentes,
pousados em promontórios de onde se avistam países igualmente diferentes. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit; font-size: x-small;"><i>in Domingo</i> - Correio da Manhã - 1 Julho 2012</span></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-21606493.post-29648803298324121622012-06-24T14:32:00.000-01:002012-07-02T14:34:43.819-01:00A História não tem compaixão<br />
<div align="justify" style="border: 0px; font-family: Georgia, 'Times New Roman', Times, serif; outline: 0px; padding: 0px 0px 15px;">
Quando a minha sobrinha Maria Luísa me pergunta se eu acho justas "as medidas de austeridade", começo por lembrar que, tirando os tempos em que os optimistas ou os esbanjadores (a classificação diverge pouco) estiveram no governo, houve sempre "medidas de austeridade". O velho Doutor Homem, meu pai, sabia que não se podia governar um país como o dr. Salazar pretendia governar a sua casa, mas acreditava que, como especialista em direito bancário, existiam fundamentalmente duas operações contabilísticas que o pudor me manda escrever em minúsculas: o "deve" e o "haver".</div>
<div align="justify" style="border: 0px; font-family: Georgia, 'Times New Roman', Times, serif; outline: 0px; padding: 0px 0px 15px;">
Este princípio, tão conservador como qualquer outro facto irremediável, transitava de governo para governo e de regime para regime independentemente da vontade do governo e dos regimes. Durante séculos a nossa Fazenda tratou de pagar os luxos de outrora, tanto a embaixada do rei D. Manuel I ao Papa como os sinos de Mafra encomendados por um capricho de D. João VI. No tempo dos impérios, o ouro e os impostos permitiam o desvario.</div>
<div align="justify" style="border: 0px; font-family: Georgia, 'Times New Roman', Times, serif; outline: 0px; padding: 0px 0px 15px;">
Isabelle, a namorada holandesa do meu sobrinho Pedro (ela, vinda da Frísia natal, inaugurou a temporada balnear de Moledo no domingo passado), acha isto uma condenação; lembro-lhe o caso holandês, quando a Companhia mandou que Maurício de Nassau regressasse a Haia porque os negócios do Pernambuco, no século XVII, estavam a dar prejuízo. "Isso são os holandeses", murmurou Maria Luísa, que mantém uma desconfiança perpétua acerca do capitalismo e das intenções dos calvinistas. Tem alguma razão. Os holandeses conheciam a condenação das duas operações contabilísticas básicas, o "deve" e o "haver". Portugal não a entendeu com toda a gravidade e ao longo da história não só gastou mais do que podia como, além disso, esbanjou a glória de o ter feito.</div>
<div align="justify" style="border: 0px; font-family: Georgia, 'Times New Roman', Times, serif; outline: 0px; padding: 0px 0px 15px;">
A memória é curta e alguns anos de optimismo político fizeram--nos esquecer que havia contas a pagar. Portugueses de antanho interrogavam-se sobre tamanha fortuna gasta tão rapidamente e sobre quem iria pagar a factura de tão boas estradas a atravessar a Serra de Arga. Europeus de antigamente, obrigados a contar as moedas durante o período do pós-guerra, foram substituídos por europeus que nasceram com férias pagas e confiança absoluta no futuro.</div>
<div align="justify" style="border: 0px; font-family: Georgia, 'Times New Roman', Times, serif; outline: 0px; padding: 0px 0px 15px;">
Há, claro, uma sensação de injustiça a pairar na atmosfera. Os humildes pagarão sempre a factura que os poderosos deixaram para a posteridade. Portugal viveu nesse regime durante mais de seiscentos anos (o leitor que imagine as excepções), entre austeridade e esbanjamento. O resultado é este, e não nos honra.</div>
<div align="justify" style="border: 0px; font-family: Georgia, 'Times New Roman', Times, serif; outline: 0px; padding: 0px 0px 15px;">
<b><span style="font-size: x-small;"><i>in Domingo</i> - Correio da Manhã - 24 Junho 2012</span></b></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-21606493.post-69099414083869736932012-06-17T21:11:00.000-01:002012-06-18T21:11:43.959-01:00As glórias do passado e os postais ilustrados<br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">Verifico
postais ilustrados de antigamente. É costume, nestes momentos, observar como o
mundo mudou nos últimos cinquenta anos, nos derradeiros sessenta, no século que
abandonámos. Há esquinas de uma praça que já desapareceu, árvores que
sucumbiram ao tempo, ruas que foram substituídas por avenidas onde prédios
modernos foram erguidos para eliminar casarões que se foram transformando em
ruínas – e seria aceitável que um velho minhoto, quase contemporâneo do
‘Titanic’, lamentasse essa transformação. Porém, a experiência e o contacto com
o género humano temperaram esse saudosismo; a par disso, que já não é pouco,
seria impossível imaginar que o mundo não iria transformar-se e erguer as suas
fachadas sobre os escombros de outros séculos.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">A
questão está em saber se as coisas ficaram melhor ou pior; “ordinariamente
ficam pior”, como lamentava um dos mais melancólicos personagens de ‘Os Maias’,
mas é preciso fazer justiça aos vindouros da época em que a idade madura
começou a colar-se a nós como uma doença e uma ameaça: eles acreditavam que
havia um papel para cumprirem no futuro, uma arquitectura para substituir os
desenhos de Raul Lino, ou novidades que cumprissem objectivos e sonhos reais.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">Por
mim, contentei-me com o desenho das florestas e, mesmo essas, sucumbiram com
incêndios ou casario polvilhado nas encostas do meu velho Minho. Quando o Verão
se aproxima e enxameia de juventude o eremitério de Moledo, limito-me, como o
velho Doutor Homem, meu pai, a considerar que as pessoas fazem escolhas e que
há-de haver uma solução para a tristeza periódica dos portugueses. A minha
sobrinha Maria Luísa enternece-se e, para me contentar, promete que o futuro
trará surpresas felizes; o esforço é notório e fico grato como um paciente a
quem o médico acena com a ablação de um vírus. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">Ontem,
a namorada holandesa do meu sobrinho Pedro, chegou dos seus laboratórios (é
bióloga) e visitou-me para saber da saúde do mais velho representante dos
resistentes de Itamaracá, no Pernambuco. Sou eu. Ela supõe que todos os
portugueses colaboraram para expulsar os holandeses do Forte de Orange depois
da batalha dos Guararapes e da saída ordeira do príncipe Maurício de Nassau. Já
lhe expliquei que do nosso patriotismo apenas restam o futebol e as colecções
de postais ilustrados. E as comparações não são ilustres nem lisonjeiras. O
futebol deixa a pátria com febres terçãs; os postais antigos deixam-na
deprimida e saudosa. Não sei o que é pior.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><b><span style="font-size: x-small;"><i>in Domingo</i> - Correio da Manhã - 17 Junho 2012</span></b></span></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-21606493.post-29039782027883234842012-06-10T13:35:00.000-01:002012-06-12T13:37:31.511-01:00Sobre o poder e quem chega lá<span style="font-family: inherit;"><br /></span><br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: inherit;">Uma
família conservadora e tradicional: foi isso que sempre fomos, em maior ou
menor grau. Nunca recebemos comendas nem favores; habituámo-nos a viver
conforme as obrigações do destino, o que resultou numa obra ligeiramente
cómica, com tanto de burlesco como de – por vezes – inexplicável. Advirto em
várias ocasiões que “uma família conservadora” não era uma delegação do dr.
Salazar entre o Porto e o Minho, suportada por regedores que tocavam concertina
nas festividades de Verão. O velho Doutor Homem, meu pai, declarara o lente de
Coimbra insuportável como pessoa e, depois da guerra, permeável à corrupção e à
inabilidade, rodeado do seu séquito de militares e damas de companhia; mais tarde,
culpou-o de coisas inadmissíveis e, durante algum tempo, julguei tratar-se de
uma obsessão pessoal. Não era. Simplesmente, julgava-se uma espécie de
cavalheiro rural inglês, dotado de uma biblioteca e de um casarão entre
carvalhos frondosos, incompatível com um primeiro-ministro que se acreditava
ungido de capacidades largamente visionárias acerca dos destinos dos seus
concidadãos. </span><br />
<span style="font-family: inherit;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: inherit;">Tenho
podido explicar às gerações mais recentes da família, em ocasiões nem sempre
apropriadas (ou depois do pequeno-almoço de sábado ou em caminhadas pelos
pinhais dos arredores), que esta posição sobre o modo como aceitamos ou não
aceitamos a presciência de um governo é puramente conservadora. E que um conservador
não compreende uma sociedade cercada de regras, impostos, deveres, polícias do
espírito e do corpo, operações de vigilância que se confundem com armadilhas
aos cidadãos. Esse retrato convém muito às democracias de hoje em dia, que
acreditam num povo virtual e escondido em suas casas. Mas é um risco
incalculável. Porque uma sociedade sem “zonas de respiração”, sem fendas nas
muralhas que a cercam, sem possibilidade de divergir ou de encontrar atalhos,
corre o risco de sufocar a todo o momento. A coberto de um mais rigoroso
controle fiscal, sanitário e político, o nosso país sofre uma intrusão que,
daqui a uns tempos, as pessoas considerarão inadmissível. Ao contrário dos
políticos de hoje, que se consideram arquitectos de uma sociedade a caminho da
perfeição e civilizadores dos vetustos sertões lusitanos, o velho Doutor Homem,
meu pai, acreditava mais na organização espontânea das pessoas, uma resposta
admirável do género humano em todas as circunstâncias e diante de todas as
dificuldades. Ele não era um mestre de ciência política, mas conhecia o
desvario dos homens mal chegavam ao poder – e temia-o com razão.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<b style="line-height: 150%;"><span style="font-family: inherit; font-size: x-small;"><i>in Domingo</i> - Correio da Manhã - 10 Junho 2012</span></b></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-21606493.post-51042078463132714522012-06-03T15:36:00.000-01:002012-06-03T15:36:09.935-01:00A preparação das férias grandes<br />
<div class="MsoNormal">
Nada há de tão comovente como o final do mês de Maio: Dona
Elaine, a governanta deste eremitério de Moledo, inicia aquilo que ela chama “a
instalação das tropas”, o que significa a preparação da casa para a campanha de
Verão, período durante o qual parte da família pretende exercer sobre Moledo
aquilo que as tropas do general Massena julgavam poder cumprir em solo português
para glória de Napoleão. A diferença abissal entre uma e outra ocupação é que
Moledo aceita de bom grado o invasor, até para compensar nove a dez meses de
isolamento e de boa solidão: Julho e Agosto são o território das chamadas
‘férias grandes’, designação hoje fora de moda mas que evoca esse tempo em que
‘a crise económica’ e os deveres do trabalho não implicavam sacrifícios tão
notórios.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Sobrinhos, irmãos, sobrinhos-netos, convidados ocasionais –
eles invadem Moledo para contentamento da memória. Isto acontece com mais
intensidade, digamos, desde que os meus irmãos e irmãs descobriram que as águas
frias do mar do Minho são um incómodo para o Verão; desde o início da década de
noventa, quando Portugal enriqueceu com dinheiro que não nos pertencia, que parte
da família se transformou em turistas estivais, procurando as Caraíbas, o
Brasil ou outras paragens de catálogo. Moledo assistiu, nessa altura, a uma
debandada das suas clientelas tradicionais, que achavam desmiolada a ideia de
avançar para o areal diante da Ínsua munidas de camisola e abafo de lã.
Expliquei, com alguma demora e mais convicção, que as “águas frias” eram um
expoente da civilização, boas para saúde e disciplinadoras para a fraqueza do
espírito. Em vão: depois do Algarve, os portugueses descobriram “o estrangeiro”
e os hotéis com ‘spas’, para onde partiam em busca de repouso e de novidade e
de onde não traziam nem uma coisa nem outra.</div>
<div class="MsoNormal">
Os que ficavam, resistentes inamovíveis, eram a alma do
lugar; havia neles, e há ainda, uma certa religiosidade mitigada pela exposição
solar e pela abundância de biquínis. Tirando a namorada holandesa do meu
sobrinho Pedro (a nossa simpática bióloga da Frísia), que acha a água de Moledo
um expoente dos trópicos, o resto da família manteve o seu período no mar
minhoto como uma espécie de teimosia contra os elementos e as modas
passageiras, decretando que o bronzeado local tinha uma classe que não se
detectava noutras paragens.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Dona Elaine aguarda a turba. A minha sobrinha Maria Luísa
começa a transferir-se, aos poucos, para um Verão que se aproxima a passos
lentos. Eu assisto, enlevado, à repetição do ritual. Sou um conservador.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-size: x-small;"><i>in Domingo</i> - Correio da Manhã - 3 Junho 2012</span></b></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-21606493.post-33542636888323060662012-05-27T00:30:00.000-01:002012-05-27T00:30:00.740-01:00Recomendações sobre o sentimento de culpa<br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">A
minha sobrinha Maria Luísa queixa-se de que os adolescentes que tem a seu cargo
vivem no meio da indigência. Quer ela referir-se, vagamente, ao estado em que
os seus dois filhos se apresentam à mesa e ao seu desinteresse pela ordem e
pela sensatez, coisas fora de moda. Maria Luísa sente isto como o peso da sua
culpa.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">Há,
aqui, uma novidade que atribuo à “idade sensata”: trata-se do “peso da sua
culpa”, uma espécie de tábua de salvação que protegeu as gerações anteriores da
catástrofe. Como se sabe, sem culpa não há civilização, coisa que surpreende
tanto a minha sobrinha como a moderna “sociologia”. Ambas, de braço dado,
defendem um mundo sem culpa onde sexo, virtude, maneiras à mesa e tabus
venerandos são descompostos para felicidade das gerações presentes e vindouras
para que todos sejam felizes e vivam em sinceridade plena e angustiante. O
assunto passou-me ao lado; presentemente não me afecta nem me desilude, pelo
simples facto de me restar um período de vida que pretendo dedicar a coisas
simples e tão banais como a jardinagem, a leitura de inutilidades e o controlo
das coronárias. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">O
sentimento de culpa, no fundo, transportava consigo uma dose mortal de
fragilidade e humildade que nos poupava a atropelos e a desconsiderações. A
minha sobrinha chama a isto hipocrisia e eu concordo. Um pouco de hipocrisia,
na verdade, ajuda a manter o mundo em ordem, além de conferir um certo calor
aos nossos subtis pecados, tão mais saborosos quanto mais ignorados ou
praticados, com denodo ou desinteresse, em absoluto segredo. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">As
coisas são como são. Os meus sobrinhos-netos apenas se limitam a cumprir um
programa que lhes estava destinado desde que a puericultura moderna descobriu
que não deviam ser reprimidos nem limitadas as suas liberdades; o mundo corre
de igual maneira e o rio Âncora não deixou de descer das montanhas entre
pinhais e arvoredos anónimos. Maria Luísa, a esquerdista da família, luta com
inimigos poderosos que se chamam ora “princípios ideológicos” ora
“inevitabilidades do tempo”: de um lado, aquilo e que acreditou até perfazer os
quarenta anos, a idade em que a razão procura alicerces para se instalar; do
outro, uma comodidade perdida por causa desses princípios. Nessa luta, estive
sempre em vantagem. Por ter nascido já no final da minha juventude, como dizem
as minhas irmãs, fui poupado a contrariedades; vivi intensamente, mas ninguém
sabe. Aprendi, com o velho Doutor Homem, meu pai, a refugiar-me nos bosques. Os
prazeres da hipocrisia são suaves, sim, mas duradouros.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><b><span style="font-size: x-small;"><i>in Domingo</i> - Correio da Manhã - 27 Maio 2012</span></b></span></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-21606493.post-36980821396601706412012-05-20T14:01:00.000-01:002012-05-21T14:02:12.079-01:00O reino dos telemóveis e a economia<br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">Um dos
meus irmãos (somos cinco) é astrólogo. Enverga a carteira profissional com
denodo e algum desconforto há algumas décadas, provando a qualidade das
palavras de Churchill, para quem a política era a arte de fazer previsões sobre
“os próximos anos” e de passar “os próximos anos” a explicar por que razão as
coisas não se passaram como estava previsto. O leitor já adivinhou que, por
detrás do tom jocoso da primeira frase se esconde outra profissão, afinal, não
menos desconfortável – a de economista. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">Raul
foi um dos mais virtuosos navegadores dos últimos oito quilómetros do rio
Minho, tanto como um excelente herdeiro da ciência praticada durante uma vida
inteira pelo nosso avô, administrador de quintas do Douro. Parte da família
(onde eu me encontrava) seguiu os passos do velho Doutor Homem, meu pai,
escolhendo o pachorrento caminho do Direito; outra, aconselhada pelo ruído do
tempo, preferiu o ramo da administração, um pouco à maneira da última geração
dos “bons homens do Porto”. Neste particular, conheço dois exemplos: o meu avô
foi contemporâneo de José Domingues dos Santos e, embora estivessem em
trincheiras desavindas durante a Monarquia do Norte, partilharam afazeres no
Instituto Superior do Comércio no Porto – Domingues dos Santos foi um
extremista da República que passou pelo exílio depois da revolução de Braga; o
meu avô quedou-se pela prática da epistolografia com ingleses do vinho do Douro,
a acrescentar a devaneios peripatéticos com Guerra Junqueiro nos limites de
Barca d’Alva e no horizonte da Quinta da Batoca, diante dos colossos da serra
do Roboredo.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">No fim
de semana passado, o meu irmão Raul citou um número qualquer relacionado com o
decréscimo na venda de telemóveis. Isso preocupava-o já não sei a que propósito
(os economistas preocupam-se até ao fim da vida); ripostei que todos os
portugueses, pelo menos, já tinham telemóveis e que não podiam estar,
permanentemente, a trocar de aparelho. Dona Elaine conserva um telefone que
atroa os ares; eu possuo, por desfastio, um que me permite receber telefonemas
e não ler mensagens; apenas os meus sobrinhos mudam periodicamente de
telemóvel, procurando estar a par daquilo que suponho serem “inovações
tecnológicas”. O meu irmão achava a notícia um sinal da crise – eu pensei nela
como o indício de algum juízo. Mas estávamos em lugares opostos. Eu acredito
que não se pode mudar de carro, de telemóvel e de máquina de aparar a relva
todos os anos; ele acredita que o progresso da humanidade segue na direcção do
infinito. E nisto estamos.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><b><span style="font-size: x-small;"><i>in Domingo</i> - Correio da Manhã - 20 Maio 2012</span></b></span></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-21606493.post-10423028627354170132012-05-13T02:24:00.000-01:002012-05-13T02:24:24.159-01:00Lições de Economia e bom relacionamento<br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">Desde
Dâmaso de Salcede e, antes dele, uma série de outros portugueses que fizeram
boa figura no regime do Constitucionalismo, que se defende a ideia de Portugal
se civilizar com denodo e orgulho. Isso implicaria “uma reforma profunda das
mentalidades” para que se procedesse à nossa equiparação a países onde não
faltam nem a ópera de outrora nem os clubes de cosmopolitas ricos. Em relação a
este projecto, o velho Doutor Homem, meu pai, era um céptico insensato e
teimoso. Em primeiro lugar, não acreditava numa “reforma das mentalidades”, que
lhe parecia um atrevimento de pessoas que não conheciam a sua terra mas estavam
desejosas de mudá-la de latitude; depois, achava que o país estava moldado quer
à sua pequenez, quer à sua abundância de inveja. Isto explica muito do
conservadorismo congénito de uma família que não apreciava exageradamente as
mudanças, a que atribuía a maior parte dos incómodos que o género humano
atravessa.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">Para
se fazerem “reformas” são necessários fundos estimáveis – e os ricos
portugueses são, geralmente, apegados aos seus cabedais, pela simples razão de
serem desconfiados em relação ao Estado e em relação aos seus concidadãos. Sem
confiança, como se sabe, não se abrem os cordões à bolsa; o mesmo se passa com
um Estado depauperado que passa metade do seu tempo inútil em busca de
artimanhas para “cobrar o imposto”, mesmo se ele for injusto. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">Grande
parte das boas mudanças que houve em Portugal foi realizada apesar do
cepticismo de famílias como a nossa. Nós não somos exemplo para quase ninguém:
habituámo-nos a café de cevada e a sobremesas austeras; continuamos a mandar o
nosso calçado ao sapateiro a fim de aplicar meias-solas; servimos vinho do
Porto no fim das refeições principais, mas em cálices que economizam o ‘tawny’
(que é bom e ainda recorda o meu avô, administrador de quintas do Douro); os
meus fatos foram feitos de encomenda há vinte anos e admitem trabalhos de
restauro quando é necessário; conserva-se na garagem um velho Volvo que já não
sabe contar quilómetros pelas modernas autoestradas do Minho; a caneta com que
escrevo estas crónicas é uma velha Parker, vetusta e alimentada com tinta que
vem semestralmente da mesma papelaria de Caminha; a conta da mercearia é paga
com regularidade mensal e Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo,
não comete exageros. Não contribuímos, portanto, para o crescimento da
economia. Mas, seguindo uma orientação antiga que vigorou entre os Homem desde
há séculos, também não pedimos grande coisa em troca. É esse o segredo.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><b><span style="font-size: x-small;"><i>in Domingo</i> - Correio da Manhã - 13 Maio 2012</span></b></span></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-21606493.post-84959620877006386712012-05-06T21:51:00.000-01:002012-05-06T21:51:00.159-01:00Uma recompensa contra o tempo<br />
<div class="MsoNormal">
<span class="description">O velho Doutor Homem, meu pai,
sempre considerou que o seu papel de ‘pater familias’ não o transformava nem
num patriarca a venerar nem num aposentado a cuidar. Creio, hoje, que suportou com
abnegação esse papel e cumpriu as obrigações que figuravam numa espécie de
código invisível herdado dos seus maiores – providenciar refeições, médico,
“férias grandes” e, certamente, uma biblioteca aos descendentes; o resto não
era assunto seu. Os seus cinco filhos sobreviveriam com saúde a este
desinteresse geral e magnânimo, acrescentado ao rigor de Dona Ester, minha mãe:
frequentaram a universidade, malbarataram talento e oportunidades, festejaram a
passagem à idade adulta – enfim, cresceram. A partir daí, sentavam-se à mesa e
discutiam assuntos correntes.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span class="description"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span class="description">Ao aproximar-se o final dos anos
cinquenta e verificada a relativa independência dos filhos, o velho Doutor
Homem, meu pai, concluiu que o seu destino estava cumprido e que, finalmente,
poderia dedicar-se com alguma largueza a satisfazer um ou outro desígnio da
idade adulta. Tendo percorrido mais de metade da sua vida sem registar
cataclismos ou grandes convulsões, é de supor que tivesse, como Samuel Johnson,
realizado “a sua viagem às Hébridas” – mas solitária, sem confidentes (tirando
talvez o seu irmão Alberto) nem conselheiros. Contabilizando danos e vantagens,
concluiu que tinha alguns anos felizes à sua frente e que devia aproveitá-los.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span class="description"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span class="description">Os caprichos do velho Doutor Homem,
meu pai, incluíam a aquisição de um Triumph TR3, verde e, com toda a certeza,
inadequado para a sua idade e para as estradas do Minho. Este projecto
acompanhou-o durante muito tempo como uma espécie de vingança sem ressentimento
contra os anos de contenção e de economias, ou como uma compensação por ter
cumprido os deveres de um pai de família tranquilo e discreto. Tamanha sensatez
merecia essa recompensa.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span class="description">Dona Ester, minha mãe, ainda sugeriu
que um automóvel daqueles, de dois lugares, não era, decerto, um emblema para
uma família vasta e barulhenta. Em vão. A família podia desenvencilhar-se sem
ele; um pouco de egoísmo e uma dose inesperada de loucura já tinham feito o seu
trabalho e aberto as estradas imaginárias por onde o automóvel iria deslizar,
rasando precipícios e flutuando em declives de arvoredos. Ao fim de um ano de
espera, o velho Doutor Homem, meu pai, cumpriu finalmente um dos sonhos da sua
vida. À porta do casarão de Ponte de Lima, a Tia Benedita, longe de achar a
ideia estapafúrdia, lembrou que o senhor Dom Miguel, “ai dele”, também gostava
de cavalos. </span></div>
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<span class="description"><br /></span></div>
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<span class="description"><b><span style="font-size: x-small;"><i>in Domingo</i> - Correio da Manhã - 6 de Maio 2012</span></b></span></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-21606493.post-85848143888876689232012-04-29T15:31:00.000-01:002012-05-02T01:57:48.987-01:00Nunca acreditámos que Portugal mudou<br />
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<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">O
velho Doutor Homem, meu pai, não conheceu o Dr. Armindo Monteiro, mas pressinto
que comungavam da mesma visão em relação à posição de Portugal durante a II
Guerra. Foi mais feliz o advogado portuense do que o embaixador em Londres: o
segundo foi afastado, o primeiro seguiu o seu caminho, confirmando que o dr.
Salazar era um pontífice beirão a administrar um país pobre, enfadonho e
corrompido. Ele achava que o Dr. Salazar tratava o país como um filho de tenra
idade que necessita de amparo e protecção, razão porque a pátria definhava,
entregue aos cuidados do antigo salvador, que tanto administrava senhas de
racionamento durante a Guerra, como se julgava guardião dos restos mortais de
el-rei D. Sancho, o Pio, ou – num arroubo – declarava que um país esfomeado
(como era o nosso) estava disposto a morrer para salvar Nagar Aveli e Goa.</span></div>
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<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">O
anti-salazarismo do velho Doutor Homem, meu pai, era elegante e fátuo, como se
precisasse do dr. Salazar para animar o seu sentido de humor, que era assassino
e cheio de crueldade — ele dizia que o professor de Coimbra calçava botins
comprados “na Saville Row de Santa Comba Dão”, o que serve para dar uma ideia
do seu dandismo incurável. Depois do desembarque na Normandia, ele alimentou a
esperança de que o mundo se interessasse por Portugal, o que seria um absurdo.
A vida continuou com poucas alterações visíveis, o que foi outro absurdo, e a família
continuou nos anos quarenta, como tinha feito antes e faria depois, a passar
férias em Ponte de Lima, rodeada de velharias, dos antepassados e da Tia
Benedita, a única de nós que acreditava que Portugal tinha sido poupado aos
bombardeamentos estrangeiros por causa das orações pelo ditador. “O mal”, dizia
a velha senhora, “é que não o entendem.”</span></div>
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<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">O
velho Doutor Homem, meu pai, ria desta profissão de fé. Ele era um
estrangeirado que, com vinte e dois anos teve a graça de umas férias inglesas.
Essas “férias inglesas”, que ficaram famosas depois, foram a consequência de um
velho distúrbio familiar, segundo o qual em Portugal não se aprende grande
coisa. Bastava a um Homem cruzar a imaginária linha de fronteira que separava a
verdura de Valença da desolação de Tuy, ou atravessar as primeiras montanhas
das Astúrias (de comboio), a caminho de Paris, para se transformar num cidadão
do mundo. Anos mais tarde, o meu pai confidenciou-me que isso se devia à
teimosia dos Homem em aceitar que a Pátria tinha mudado consideravelmente, mais
do que podia a compreensão da velha família espalhada pelo Porto, por Ponte de
Lima e pelo arvoredo dos Arcos.</span></div>
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<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><b><span style="font-size: x-small;"><i>in Domingo</i> - Correio da Manhã - 29 Abril 2012</span></b></span></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-21606493.post-52598638243817184192012-04-22T15:29:00.000-01:002012-04-23T15:30:16.685-01:00O mês de Abril que não regressa<br />
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Houve um dia, creio que se tratava de uma tarde Abril, fria
como as deste ano, em que percebi que tinha envelhecido sem remissão. O velho
Doutor Homem, meu pai, acabara de regressar de um visita ao médico e anunciou
que “precisava de fazer exames”, eufemismo para explicar que sofria de um mal
crónico que haveria de o acompanhar até 1974. A doença do meu pai ajudou-o a
sobreviver; Dona Ester, minha mãe, morreu antes; o seu médico, companheiro do
bridge semanal, morreu antes. Ele lutou com o mal e enganou-o enquanto pôde –
mas eu envelheci nesse dia e percebi que tinha chegado a um confronto decisivo
com a minha idade.</div>
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<br /></div>
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Na família, por graça e por grande amor à sinceridade,
sempre fui tratado como um caso especial – eu, o mais velho dos cinco irmãos,
teria envelhecido demasiado cedo: vestia fato aos sábados, os meus sapatos
tiveram sempre atacador, o celibato era visto como a antecâmara de uma vocação
de bibliotecário discreto, mesmo a dedicação à árvore genealógica da família
evidenciava um envelhecimento prematuro. Aceitei este retrato por preguiça e
comodismo; para o desmentir eram necessárias explicações que eu não queria dar
e que, ao longo da minha vida, guardei como um triunfo sobre a tagarelice.
Paixões, devaneios de meia idade, viagens discretas, certas leituras, cartas
trocadas ou nunca respondidas – tudo isso pertence à memória de cada um e,
sobretudo, à sua radiografia mais íntima. </div>
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<br /></div>
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A doença do meu pai relembrou-me, cedo demais, os deveres
familiares e a iminência do fim. Agora, que é Abril, relembro o poeta – “Abril
é o mês mais cruel” – e relembro os livros desse tempo de iniciação ao
sofrimento. Houve um tempo, depois de ter chegado à idade em que o pudor se
misturava com a decência (para deixar de ser vergonha apenas), em que as
lágrimas eram apenas um sinal de tristeza, de melancolia e, até, de sofrimento.
Mas tanto o sofrimento como a tristeza passaram a ser um espectáculo oferecido
em público, para uma audiência de espectadores convertidos à sensibilidade do
choroso. Ora, as lágrimas são mais do que um sinal; elas são o fenómeno em si.
Durante anos, assisti, não sem alguma indignação, à exigência de que os homens
– seres graníticos ou, pelo menos, venais – chorassem com abundância para
provar a sua suposta humanidade. Minha mãe, Dona Ester, não concordava. Ela
achava que as lágrimas eram parágrafos num romance popular, destinado a
alimentar almas que não deixavam sombra. Entretanto, envelhece-se sem remissão.
E sem regresso.</div>
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<b><span style="font-size: x-small;"><i>in Domingo</i> - Correio da Manhã - 22 Abril 2012</span></b></div>Unknownnoreply@blogger.com