domingo, agosto 28, 2011

Notas de toponímia no litoral minhoto

Havia uma dúvida na família sempre que a Tia Benedita se referia a dois elementos toponímicos de Vila Praia de Âncora, onde amiúde se deslocava para visitar a Tia Henriqueta – a melhor das cozinheiras da família. Eram eles a Praça da República e a Rua 5 de Outubro (sem falar das ruas dedicadas a Cândido dos Reis e a Miguel Bombarda, outros símbolos republicanos). Da casa da Tia Henriqueta ela gostava de apreciar a cúpula e os granitos da capela da Senhora da Bonança que o tempo transformou mas que, para a matriarca dos Homem, nunca deixou de estar centrada no Largo das Necessidades (ou da Lagarteira, ou da Bonança).

Foi esse o motivo por que a família, que não gostava de polémicas toponímicas, preferiu a partir dos anos trinta veranear em Moledo e em Caminha, entre moinhos e sargaço. A preferência trouxe-me, cinquenta anos depois, aos pinhais de Moledo, a praia onde Dona Ester, minha mãe, decidiu que os seus filhos (os mais novos) deviam aprender a nadar sob a supervisão e a generosidade do Senhor Azevedo, um dos mais dignos representantes da classe dos velhos banheiros do Minho, para quem nunca se colocou o problema do frio das ondas. Os meus sobrinhos-netos, filhos da minha sobrinha Maria Luísa, apenas se queixam das neblinas e não dão conta da temperatura da água, que eles consideram normais; a mãe, deitada ao sol, na areia, onde creio que lê o romance de um autor americano cujo nome não consigo fixar, ignora este confronto entre a história toponímica e a história balnear do litoral que a família frequenta desde há um século. Desconheço se alguma vez, sentada a uma das mesas do bar da praia, o Pra Lá Caminha, se preocupou com essa genealogia brava e melancólica, mas creio que não. O sol é uma dádiva do Verão tal como a chuva miúda e permanente nos reconforta durante o resto do ano.

Lendo o jornal, aos sábados de esplanada, ou esperando que a manhã de domingo se prolongue em Outonos letais e poéticos, Maria Luísa preocupa-se com a herança da família. Ela gostaria que tivéssemos sido diferentes ou, talvez, que tivéssemos pertencido a uma tradição “mais democrática”, partilhado a alegria das revoluções que os arquivos dão como vencedores. Coube-lhe receber-nos assim: fotografias de avós bem vestidos, uma cópia perfeita do retrato do Senhor Dom Miguel no casarão de Ponte de Lima, uma biblioteca que se amiúde se confunde com um depósito de papéis irrisórios, Dona Elaine que insiste em reforçar os assados de domingo, esperando sobrinhos devoradores ou as minhas irmãs que agitam a bandeira da dieta e do emagrecimento compulsivo. O mundo não é perfeito, mas quase.

in Domingo - Correio da Manhã - 28 Agosto 2011

domingo, agosto 21, 2011

A civilização dos tempos livres

O velho Doutor Homem, meu pai, julgava – na sua estultícia – que as férias eram um período de descanso. Os anos e os costumes desmentiram-no sucessivamente sempre que tiveram oportunidade. Primeiro, com a asserção burguesa de que não havia tempo inútil na nossa vida e que, portanto, não só era preciso transformar em proventos tudo o que nos passasse pela mão – como, além disso, o tempo se encarregou de encontrar, para a expressão “tempo livre”, um prefixo abominável que passou a dominar a “ciência das férias”: “ocupação”. Ora, a “ocupação dos tempos livres” passou a ser, essa sim, uma ciência incontornável e omnipresente, cujos técnicos estão colocados em todos os níveis da sociedade e em todas as escalas da vida humana, partindo – todos – do princípio de que, se há tempo livre, ele deve ser ocupado com determinação. Além da “ocupação dos tempos livres” passou a existir, para os domínios da puberdade e da puericultura, a expressão, igualmente deplorável, de “aproveitamento dos tempos livres”. Desses propósitos resultou um mundo comandado pela indústria do lazer com o único propósito explícito de terminar quer com os tempos livres, quer com a solidão criadora que está na base do lazer, propriamente dito.

A Tia Benedita – há quem atribua o facto “aos genes” – sobreviveu até aos noventa anos, aproximadamente. Nunca fez desporto nem praticou qualquer tipo de regime alimentar persecutório, tirando, nos seus períodos de maior devoção e ultramontanismo, aquele saudável jejum das sextas-feiras. Mesmo assim, a substituição da galinha de espeto pelo peixe do mar do Minho nunca foi uma imposição – ela seguia o preceito como uma consequência natural da sua vida dedicada à tradição e à defesa do século XIX. E, valha a verdade, nunca “aproveitou os tempos livres”. Igual propósito tiveram os meus antepassados que desconheciam a ciência do tempo livre, precisamente porque tinham sido educados na presunção de que a preguiça, praticada com parcimónia e delicadeza, era um dispositivo da civilização – uma civilização que nos redimia, em ocasiões propícias e merecidas, pela arte de contemplar, de apreciar o silêncio e de gozar os bons momentos. Nenhum de nós foi atleta, trapezista ou astrólogo. Houve tocadores de oboé (como o Tio Henrique, uma preciosidade dos Arcos) que dedicaram a sua vida a imaginar que compunham uma sinfonia sobre as savanas de África. Mas nenhum deles ocupou os seus tempos livres. Pelo contrário, delapidaram essa parte da sua vida conforme entenderam. E creio bem que foram felizes e razoavelmente civilizados.

in Domingo - Correio da Manhã - 21 Agosto 2011

domingo, agosto 14, 2011

Os portugueses gostam pouco de Portugal

Os portugueses, murmurava o velho Doutor Homem, meu pai, “não gostam de Portugal”. O causídico era um renitente apóstolo que bramava contra os seus concidadãos, por achar que entre eles e a velha Pátria havia uma enervante soma de mal-entendidos. E, no entanto, era raro encontrar, nesses longínquos anos cinquenta, uma alma que se dispusesse a dizer do país aquilo que Eça de Queirós coleccionara setenta anos antes, ao longo dos seus romances e em páginas que ainda hoje são como aguilhões para o orgulho do constitucionalismo; na época, com o dr. Salazar a passar férias na Urgeiriça, entre engenheiros da minas e clérigos de primeira linha, Portugal era um lugar recatado e ligeiramente sonâmbulo de onde apenas se distinguia a figura áspera ou rezinga da Tia Benedita, a matriarca miguelista da família, que se recolhia ao casarão de Ponte de Lima para proteger-se do calor, do ruído das romarias e do excesso de nudez que vislumbrava onde não havia senão mangas arregaçadas. A Tia Benedita era, por si só, uma figura de romance; contrastava com a mediania complacente – era, verdadeiramente, a grande reaccionária da família, avessa à beatitude mediana da época e à pacífica mortificação daqueles tempos.

Ora, os portugueses gostavam do seu país; simplesmente, como descortinava o velho Doutor Homem, meu pai, “o seu país” não era bem “o seu país”, mas uma aldeia beirã e iliberal, vestida em Santa Comba e protegida da luz do sol por um chapéu de feltro negro. Os Homem, pela cartilha de Dona Ester, minha mãe, achavam que o sol, a praia, o iodo e as viagens para lá de Espanha, eram um antídoto contra a pequenez e os costumes – e achavam que as grandes paisagens, as grandes personagens (do senhor Dom Miguel ao Remexido, de Dona Carlota Joaquina a João Franco, para não mencionar uma galeria de autores rebeldes e afastados das Selectas) e os grandes desígnios, não faziam parte dos gostos dos portugueses. O Tio Alberto rasgava as sombras verdejantes de São Pedro de Arcos ao volante de um Super Sport Villa d’Este 2500, o Alfa Romeo da época, que ele julgava o ideal para transportar Gina Lollobrigida ou Rita Hayworth (conservou-o durante dez anos, até um dia aparecer nas ruas de Caminha com um Alfa Spider descapotável vermelho). Ele foi o português heróico da minha juventude, a excepção naquele mundo de receios e cautelas excessivas. A família, sim, gostava de Portugal, apreciava a ventania das praias, o halo de loucura que tomava conta dos melhores de nós, a paisagem profunda e sombria das nossas serrras. Os nossos heróis eram pouco bem comportados.

in Domingo - Correio da Manhã - 14 Agosto 2011

domingo, agosto 07, 2011

O Verão interrompe esse ciclo de tranquilidade que só se vive hoje nos romances quase bucólicos de Mrs. Trollope ou, por cúmulo, nas recordações de um velho que se supõe letrado. Moledo transforma-se numa academia cujos pares, de livro na mão, visitam a praia em busca do iodo de outras eras. O iodo é o meu mito pessoal e recomendo-o como forma de abreviar conversas sobre o que fazer durante “as férias de Verão”; a menção ao iodo transporta consigo um enigma que poucos sabem decifrar, mas que a mim serve como argumento. Quando parte da família começou, no Verão, a rumar ao Algarve ou a outras paragens meridionais, abaixo do Equador ou na sua proximidade, eu insistia nas qualidades das praias do Minho. “E que qualidades são essas?” O iodo. Tudo se resumia ao iodo. A menção do iodo calava todas as dúvidas. Repousante, vivificante para os pulmões e doenças respiratórias, o reumatismo, os problemas de pele e os males de amor, o iodo era, para o Verão, o que as sulfamidas e o mercurocromo deviam ser para ferimentos em geral. Eu não mencionava (e continuo a abster-me de o fazer) a frescura das manhãs (a que os meus sobrinhos chamam, exageradamente, “o frio”) nem a neblina sobre Santa Tecla.
O meu argumento foi válido por uma ou duas décadas, durante as quais atormentei o desejo de parte da família se libertar da obrigação de inaugurar e concluir a época balnear nos areais de Moledo. Com o tempo, o argumento perdeu força. Apenas a minha sobrinha Maria Luísa, contra todas as expectativas, continuou a marcar presença estival naquilo que, durante o resto do ano, é conhecido como o eremitério de Moledo. Intimamente, ela sabe que Moledo é o que resta de uma civilização que procurava alimentar com mitos a recusa dos tempos modernos. Os velhos, como eu, e os novos, entendem-se nessa recusa que, às vezes, se parece bastante com indiferença. Os meus sobrinhos, passada a idade em que apenas utilizavam o pequeno pinhal em cerimónias rituais para fumar haxixe, descobriram também as virtudes de Moledo. Moledo permanece, sitiada diante do mar, e enquanto não arderem as encostas de pinhais e de velhos carvalhos, lá nas alturas. Os sobrinhos vêm para apreciar uma raridade de museu – um tio que, para além de se fingir tolerante, os senta à mesa e não os entende totalmente. Só eles não acham estranha a minha palestra sobre as virtudes do iodo. É uma excentricidade que desculpam e aceitam. Quando perdemos uma excentricidade, perdemos aquilo que nos faz continuar vivos no meio das pessoas como nós.

in Domingo - Correio da Manhã - 7 de Agosto 2011