domingo, abril 24, 2011

Conversa de Abril ou a paciência

A destreza social, tal como a paciência, diminui bastante com a idade e nunca se sabe o que se pode esperar de um velho, a quem se perdoam a falta de memória, os achaques de Primavera ou as idiossincrasias na política ou na literatura. Falo de literatura apenas por falar — na verdade, pouco se comenta de literatura à mesa nestes dias em que “a política” tomou conta das desventuras da pátria. A mim, mencionam-me vagamente uns nomes de novos autores, mas o defeito da ignorância é um dos meus pecados. Arrependo-me com seriedade, ciente de que o mundo não começou ontem nem há-de acabar amanhã, e escuto; desconheço as desventuras do romance contemporâneo, a minha preguiça vai sendo um Adamastor que engole todo e qualquer esforço. A minha sobrinha, que depenica nas minhas estantes à procura de literatura para as noites bracarenses, é exigente na matéria, o que me comove com alguma largueza. Dou-me a esse luxo com ela, embora dispense saber como se preenchem de livros as noites de Braga — o que me não contam, eu não sei; o que não sei, não me assusta; o que não me assusta, tem uma vaga existência para lá de Moledo e das suas tardes amenas de Abril, fustigadas pela chuva, temperadas pelo sol ligeiro que chega das serras.

Entretanto, o tempo foi passando. São coisas que não se alteram. Penso, hoje, que educámos as novas gerações para que elas fossem mais felizes e, provavelmente, mais apresentáveis. A avaliar pelo retrato de conjunto, não conseguimos nem uma coisa nem outra. Não piorámos substancialmente, mas ficámos com mais dúvidas.

Quando ainda não se tinha inventado o iodo para justificar temporadas de praia, o velho doutor Homem, meu pai, retirava-se para a velha casa de Ponte de Lima, arrastando consigo a família e uma considerável quantidade de malas transportadas do Porto em duas via­gens. Mas ele era um “moderno”, reconheço hoje. Num mundo que ainda não tinha descoberto os telemóveis ou a Internet, mas que ouvia rádio e se preparava para, um dia, ver televisão, as temporadas de Ponte de Lima significavam o que passaram depois a ser os retiros espirituais ou os ‘spas’ da actualidade. Não éramos melhores do que os meus sobrinhos. Reconheço, claro, que a espécie registou, desde então, mudanças substanciais: ficou mais barulhenta, está mais despenteada e sofre mais de asma, por exemplo. No resto, a destreza social – tal como a paciência – continua a diminuir. A felicidade continua a ser uma espécie de arremedo e de subproduto, o resultado da dificuldade em encarar o tempo e as suas vicissitudes como aquilo que elas são: um puro feitio, e não um defeito. Conversa para Abril, diz-me a minha sobrinha.

in Domingo - Correio da Manhã - 24 Abril 2011

domingo, abril 17, 2011

Os poetas e um elogio a Homem de Mello

O velho Doutor Homem, meu pai, um pouco na esteira da família – que gostava de exagerar no seu barbarismo e fingia uma insensibilidade de que não padecia –, dizia desconfiar dos poetas ou, pelo menos, da sua aura. O Porto do seu tempo, depois dos arroubos finisseculares que motivariam gargalhadas de Camilo na sua biografia de Basílio Fernndes Enxertado, dava-se relativamente mal com “os poetas” e tinha razões para isso – o constitucionalismo encheu de vates as secretarias do reino e a República, burguesa e radical, não tinha nem a noção da métrica nem fantasia que lhe chegassem para lá dos ditirambos ao código civil. Ou seja: os poetas do constitucionalismo eram medíocres, e os medíocres da República não eram poetas. Tirando a dedicação existencial e amistosa do meu avô Norberto, administrador de quintas do Douro, pelo poeta de Barca d’Alva e da Quinta da Batoca, Guerra Junqueiro, a família evitava comprar os almanaques de versos. Desde que D. Pedro cometeu a Carta Constitucional em verso que os Homem se tornaram relapsos aos dicionários de rimas.

Mas o velho Doutor Homem, meu pai, mentia. Ou, mais delicadamente, escondia uma generosa biblioteca com os seus poetas ingleses, onde a idade me confortou mais tarde com o encontro amoroso tanto de Shelley como de Keats ou Coleridge, a que acrescentou outros que lhe serviam os propósitos de alguma melancolia disfarçada, como Yeats ou, episodicamente, W. H. Auden.

O tio Alberto, bibliófilo de São Pedro de Arcos, onde as neblinas nunca o levaram às penumbras da poesia mas à espiritualidade da gastronomia, considerava Pedro Homem de Mello o único poeta a quem devia alguma deferência. Eu tinha medo do Dr. Homem de Mello que era vinte anos mais velho, era respeitado n’A Brasileira e fumava cigarros ‘Antoninos’, um plebeísmo romântico e elegante. Recordo-o hoje, caminhando pelas veredas de Afife ou entre as sombras dos pinhais da Serra d’Arga – e uma melancolia volúvel relembra os seus poemas em que ninguém descortinara o pessimismo sem amargura daquele homem que hoje apenas merece a atenção dos velhos. O meu pai apreciava-o e considerava-o um emblema de lágrimas de outrora; ele, que nos momentos mais cómicos ria do mau sentimentalismo de Junqueiro ou de certa impostura de Garrett (o Leitão da Silva, como era conhecido na nossa família), guardava uma comoção para Homem de Mello. Compreendo-o: era um dos derrotados. E, na galeria de poetas, a sua sensibilidade era imprevisível, como uma alma antiga e esvoaçante, perdida nos areais do Minho.

in Domingo - Correio da Manhã - 17 Abril 2011

domingo, abril 10, 2011

A União Ibérica e os 'carabineros' de bigode

Para Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, a Espanha começa em Vila Nova de Cerveira e termina na margem de lá do Minho ou, quando muito, em Camposancos, quando a montanha de Santa Tecla deixa de ser ameaçadora. Tudo o resto é o que ela entende. No ano passado, quando, em pleno Verão, Maria Luísa veio de Braga decidida a levar-nos em peregrinação a Vigo, por altura das festas, anunciou do jardim “que íamos a Espanha”. Dona Elaine aceitou a oferta, mas relembrou que Vigo era tanto Espanha como Moledo uma aldeia marroquina – que Vigo era Vigo. Esta clareza meridiana surpreenderá o leitor mais distraído mas, de facto, “ir a Espanha” é uma emoção apenas enquanto não se entra “no território”. Mal se atravessa a ponte de Cerveira, Dona Elaine acredita que o lado de lá não passa de uma reencarnação do Minho, com os mesmos granitos e talvez menos lixo na rua.

Ela não faz parte, portanto, dos portugueses que pretendem uma “união ibérica”; o seu nacionalismo minhoto leva-a a ver vinhas de enforcado nos desfiladeiros madeirenses do Curral das Freiras ou de Porto Moniz, onde foi por duas vezes de excursão e, se chegasse a El Ferrol, aquela esquadria aprumada e matemática das suas ruas não a surpreenderia porque acha Viana o zénite da arrumação. Ao contrário de Dona Elaine, que despreza com uma ligeira sobranceria (que nunca toca os limites da antipatia) tudo o que fica para lá da sua geografia e do seu sotaque, os portugueses apreciam muito a “união ibérica” e quase metade deles gostaria de ser uma “autonomia espanhola”, segundo dizem os jornais. Este desejo é antigo, tanto como o seu contrário, e emerge periodicamente ou da nossa vastíssima capacidade de desistir ou da incapacidade de observar as coisas de longe.

O velho Doutor Homem, meu pai, era um amante das coisas de Espanha e, ao contrário de Dona Elaine, admitia a existência real do país vizinho. Visitava-a amiúde, ou – antes da Guerra – para nos levar em passeio para lá da Península, ou, mais tarde, na sua idade madura, para mudar episodicamente de culinária e de cheiro de tabaco. Havia, nessa altura, “um cheiro a Espanha”, um misto de águas de colónia populares e de fumo de tabaco negro, de comida generosa e de gasolina mais barata. A “união ibérica” é uma fantasia pueril dos inimigos de Espanha; ao contrário dos “iberistas”, costumo insistir em que nos convém muito a sua existência separada da nossa e, se possível, com fronteiras vigiadas pela Guarda Fiscal e por “carabineros” de bigode. É a Espanha que garante a nossa existência real. Integrados em Espanha, perderíamos os nossos defeitos.

in Domingo - Correio da Manhã - 10 Abril 2011

domingo, abril 03, 2011

Uma história de outros tempos

O velho Doutor Homem, meu pai, nunca me perguntou se eu tinha deixado o meu coração no Rio de Janeiro daqueles anos, mas suspeitou que essa temporada carioca tinha mudado um pouco a minha vida. O saudoso Hotel Glória guardou por uns tempos a inútil gabardina que deixei esquecida sobre uma cadeira no quarto que ocupei durante três meses sem a ter usado uma única vez; depois, deve ter depreendido que o seu dono nunca voltaria para buscá-la. Nunca voltei, nem poderia. À minha sobrinha Maria Luísa, que acha quase todas as histórias de amor dignas de romance, tive de explicar o que era o mundo da época – a acrescentar ao complexo de deveres e temores que era natural apoderar-se de um português fora de portas. Sim, houve algum temor a mais; foi ele a vencer o coração, que ficou – como, sábio e discreto, suspeitou o velho Doutor Homem, meu pai – no Rio de Janeiro, algures na Copacabana enevoada da última semana daquele trimestre. A família tinha-me enviado ao Rio sob o pretexto de contactar os nossos correspondentes na então capital brasileira, mas a verdade é que a viagem fora prescrita por Dona Ester, minha mãe, como um medicamento apropriado para cauterizar feridas recentes, um noivado desfeito e um temperamento transtornado pela melancolia da passagem à idade adulta. O escritório dos advogados que tratavam dos nossos negócios do outro lado do Atlântico era uma fortaleza dos anos trinta que sobrevivia prosperamente nos anos cinquenta, ocupado por colarinhos e fatos de corte francês. Foi nesse cenário que a conheci, como uma luz passageira que estava destinada a ser – como acabou por ser – definitiva. Durante semanas aprendi com ela (uma jovem nunca deixou de ser jovem nas minhas recordações) que, para lá dos deveres e dos temores, havia uma raríssima beleza na fragilidade da vida. Nessas semanas em que vivi, emprestada, a leveza dos crepúsculos cariocas, despedi-me várias vezes do meu destino; de cada vez que, à noite, me apresentava diante da janela do meu quarto, naquele hotel que – como eu –nascera velho e coberto por um manto de solenidade, encarregava-me de afastar a tentação de seguir o meu coração. Descobri tarde demais que não se tratava de uma tentação mas sim de outra vida, e que eu poderia escolhê-la se fosse outro ou se estivesse na disposição de correr todos os riscos da minha idade. Foi, provavelmente, o maior pecado da minha vida. Regressei a Portugal, aos meus deveres e temores. Soube muito depois que Dona Ester, minha mãe, nunca me perdoou. in Domingo - Correio da Manhã - 3 Abril 2011