domingo, fevereiro 27, 2011

A chuva de Moledo e os amores de outrora

O fim de semana de Moledo começa à sexta-feira pelo meio da tarde, quando os cafés da praia recebem as visitas do costume, que agora vêm – a medo – reconhecer os estragos dos temporais. O muro do paredão ruiu um pouco, as ondas desfizeram uma parte do areal, a Ínsua é engolida pelo mar, a neblina não deixa perceber o rosto de Santa Tecla, a chuva limpa o empedrado das ruas que isolam os pinhais. É o habitual calendário de Moledo, que seria muito diferente se a geografia cometesse o erro de colocar este promontório à beira do Índico tropical ou apenas um pouco para lá das Caraíbas, ao contrário do que o Criador dispôs; o que se ganharia em tepidez desapareceria em variedade meteorológica – a imaginação precisa de se retemperar com as chuvas de Inverno, os temporais, o vento que desce das rias e embate nos carvalhos das alturas, tudo isso para que o Verão tenha, depois, algum sentido quando tudo for reconstruído.

As pessoas fotografam agora as ruínas da praia: riscos de sargaço na areia, dunas desbastadas, ramos caídos. Será uma memória quando, em Junho e Julho, iniciarem o ritual da época e puderem, ao crepúsculo, contemplar o mais belo mar do hemisfério.

A minha sobrinha Maria Luísa consegue estacionar o carro diante de um dos dois cafés e leva-me em peregrinação sentimental pelo meio da chuva. Ela acha que o clima, o cenário e a composição em geral (o retrato de Turner que se equilibra sobre a praia, no fundo) favorecem a leitura, ou do jornal ou do romance da moda, à mesa do café. Tem alguma razão; os lugares seleccionam os frequentadores, e reconheço que, além de melancólico, o ambiente é propício a um certo recolhimento, ao uso de gabardinas e de calçado para atravessar os charcos. Na véspera dos meus noventa anos, a literatura é um mal e um bem. Com esta idade já se sabe que a vida é um caminho à beira do precipício e que uma certa ironia acaba por ser um bálsamo para o cepticismo, a tristeza e a tendinite. Quando alguém passa de bicicleta lá fora (as vidraças dos cafés são uma bênção para os preguiçosos, especialmente no Inverno), recordo Dona Ester, minha mãe, entusiasta do exercício físico e da indiferença diante dos Elementos, a que ela não atribuía grande importância – quer chovesse, quer viesse a canícula do Estio, ela achava que o reumatismo e a melancolia não eram senão o resultado da preguiça portuguesa. Setenta ou oitenta anos depois reconheço que ela tinha razão, porque apetece enfrentar o temporal em benefício da paisagem. Tal como os grandes amores de outrora, a paisagem é um bem inestimável.

in Domingo - Correio da Manhã - 27 Fevereiro 2011

domingo, fevereiro 20, 2011

A felicidade à vista de Moledo

A chuva de Moledo, que é um empréstimo da vizinha Galiza, com os seus tons de cinza e verde, foi interrompida pela Dra. Celina, que veio devolver um exemplar de ‘Onde Está a Felicidade?', uma edição de 1885 que passou de estante em estante até aterrar nesta, diante da minha mesa, definitiva. Eu tinha-lho emprestado em troca de uns fac-símiles de António Pedro. O livrinho de Camilo é, no fundo, uma espécie de metáfora acerca dos males e dos bens do mundo, e a pergunta do título faz sentido.

Com esta idade, deitando-me cedo, despertando ainda com o silêncio da madrugada, não me chega o tempo de pensar no assunto - a felicidade é uma matéria para noctívagos, se me faço entender: ou seres românticos que deambulam debaixo do "plúmbeo céu", ou poetas que herdaram o génio duvidoso daqueles versejadores do constitucionalismo que compunham sonetos nas secretarias das repartições e dos tribunais.

Dona Ester, minha mãe, desconfiava do tema; ela acreditava no poder regenerador do Verão, do iodo administrado sem barreiras e dos romances de aventuras - e teve a sorte de não conhecer João de Lemos e o seu poema ‘A Lua de Londres' onde vêm esses versos fatais: "É noite. O astro saudoso/ rompe a custo um plúmbeo céu,/ tolda-lhe o rosto formoso/ alvacento, húmido véu, etc." O velho Doutor Homem, meu pai, glosava as décimas do poema com trejeitos de sátiro, imitando o Eusebiozinho de ‘Os Maias', vestido de veludo e transpirando de febre.

Havia uma razão para João de Lemos ser conhecido paredes dentro - tinha nascido na Régua e o meu avô, como administrador de quintas do Douro, coleccionava excentricidades; por isso guardava um exemplar amarelecido de ‘Serões da Aldeia', um dos mais funestos livros de prosa do século XIX (de poesia, o meu avô apenas manteve contactos com Guerra Junqueiro por motivos agrícolas - ou para contemplar os bucólicos laranjais de Barca d'Alva). Bulhão Pato diz que ‘A Lua de Londres' foi composto por causa das saudades que o vate da Regeneração, estando na capital inglesa, sentiu "do choupal sussurrante e estrelado de pirilampos".

Seja como for, a chuva de Moledo interrompeu-se por instantes. Não é uma chuva romântica; cai sobre os pinhais e lembra encontros fugazes com a felicidade, despedidas sem sentido, ruínas de muros atrás das dunas, passeios que enfrentam as intempéries. Dona Elaine, a governanta deste eremitério, recomendou que aproveitasse a interrupção no temporal para fazer a minha pequena caminhada. Ela sabe que a felicidade são pequenas coisas.

in Domingo - Correio da Manhã - 20 Fevereiro 2011

quinta-feira, fevereiro 17, 2011

O novo livro de Crónicas





Depois de «Os Males da Existência – Crónicas de Um Reaccionário Minhoto», em 2008, António Sousa Homem está de regresso com «Um Promontório em Moledo - Crónicas de um Reaccionário Minhoto», também editado pela Bertrand.







"O meu médico de Viana (a quem recorro nas aflições, e que vigia o temperamento das coronárias e do fluxo renal) não o diz, mas sei que a longevidade dos Homem o aflige como um milagre da província. O segredo é só este: espremer a pasta de dentes pelo fundo, não ler demasiados romances, manter os retratos dos antepassados, levantar cedo e evitar ceder à indignação. Depois de fazer oitenta e cinco anos, já lá vão uns tempos, a família trata-me como uma página do álbum de glórias, anterior ao Titanic, destinado ao naufrágio ou ao museu. Faço o que posso, só para não os desiludir."

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domingo, fevereiro 13, 2011

O Antigo Egipto era uma falsificação

O mundo do meu avô estava delimitado por dois perigos iminentes: a filoxera e as encostas de La Fuente de San Esteban. A filoxera arruinou o «antigo regime» do Douro; quanto a La Fuente de San Esteban e a La Fregeneda, era a sua fronteira com o desconhecido – a Espanha do seu tempo, que era muito mais do que a galega, vizinha de Valença, do rio Minho e dos choupos verdes de Cerveira.

Hoje, os perigos iminentes aumentaram; o mundo ficou mais inseguro se bem que o desconhecido não comece em Espanha nem acabe nos Urais, onde principiaria o fim do mundo. O meu sobrinho Pedro acompanha os acontecimentos do Egipto como se fossem, em simultâneo, a filoxera e as encostas de La Fuente de San Esteban; só que «em simultâneo» quer dizer, exactamente, «ao mesmo tempo» em que os «acontecimentos» decorrem, o que impede a repetição da forma como o velho Doutor Homem, meu pai, gostava de ministrar as suas lições de História dos Impérios a propósito da II Guerra, que seguíamos com vários dias de atraso pelos jornais da época e pelos noticiários da rádio, encostados a uma pilha de velhos atlas e tratados de geografia e, mesmo, com plantas topográficas de certas cidades importantes. Nesses papéis impressos em cores esbatidas, recolhidos das bibliotecas familiares onde tinham sido guardados com o esmero de tesouros do Vaticano, traçavam-se coordenadas de geoestratégia e movimentações de tropas em debandada.

O meu sobrinho escutou estas informações com a curiosidade de um paleontólogo, murmurou qualquer coisa acerca de como o tempo passa e apressou-se a mudar de canal de televisão, procurando mais imagens transmitidas do Cairo.

Voltando atrás sessenta anos, o Cairo era um oásis de recordações. Não vinham com o Cairo apenas o Alto Egipto, as ruínas do deserto e o fim do império otomano. Vinha também um esplendor que não era bem do Cairo mas dos ingleses que o habitaram. Sabíamos pouco desse mundo de aventura, mistério, exotismo, crocodilos e malária; as pirâmides estavam ali para que as admirássemos, os sarcófagos continham faraós ou sacerdotes que tratávamos como achados arqueológicos, o Nilo era um espelho cristalino das suas margens, e mesmo o Suez era uma recordação literária de Eça de Queirós. A única coisa que não topávamos era essa verdade simples – a de o Egipto ser, largamente, habitado por egípcios e não por historiadores que gostavam de ruínas e de cidades cobertas de pé e personagens de Agatha Christie. O nosso mundo era curto, civilizado e cabia num atlas. Não tinha grande correspondência com o mundo real.

in Domingo - Correio da Manhã - 13 Fevereiro 2011

domingo, fevereiro 06, 2011

As pessoas que queriam desaparecer

O tio Alberto, bibliófilo de São Pedro de Arcos, “desaparecia de circulação” temporária e periodicamente. O convívio com o género humano não lhe era prejudicial, propriamente dito, nem lhe causava doenças imperscrutáveis; simplesmente, várias necessidades o afligiam e não tivemos conhecimento de todas. Passava a maior parte do ano a dedicar-se à actividade que lhe garantia uma administração razoável da sua conta bancária, e dedicava um período decente a “desaparecer da circulação” – o que significava que seria surpreendente receberem-se notícias da sua existência durante esses dois meses, uma média compreensível e aceitável.

Este ritmo só era possível porque lhe faltavam outros bens, nomeadamente uma família para manter e um emprego regular, sujeito à lei geral. Os Homem habituaram-se, desde que perceberam que o regime tinha mudado definitivamente (o que aconteceu há cento e cinquenta anos, mais ou menos), a cumprir a lei mais do que todos os outros; isto garantia-lhes sossego e paz civil, ausência de fiscais e meirinhos à porta dos seus refúgios, e distância em relação a credores. Por mais aziagos e tumultuosos que fossem os tempos, havia uma barreira de incomunicabilidade entre a família e o resto do mundo (normalmente confundida com certa e inegável misantropia). Isto, salvo erro, garantia certa liberdade de movimentos. Desde há cento e cinquenta anos, por arredondamento, que os Homem “desapareceram da circulação”. Vão à farmácia, recebem telefonemas, frequentam a praia, pagam generosamente os impostos, mantêm boas relações com conhecidos e, sobretudo, com desconhecidos – mas sentam-se nas filas do meio, perto das coxias de saída. Tentei explicar esta “filosofia” à minha sobrinha Maria Luísa, prevenindo-a de que, logo por detrás, está um certo “complexo de superioridade”, garantido por anos de sobrevivência no anonimato.

É decerto um exagero. O velho Doutor Homem, meu pai, recordava a forma como a Tia Benedita – matriarca e guardiã da família, em simultâneo – olhava para o assunto: com indiferença. Os muros do casarão de Ponte de Lima não tinham fosso a resguardá-los; limitavam-se a acompanhar a floração das rosas de Santa Teresinha durante o mês de Maio e a advertir a populaça familiar de que estava tudo muito bem mas evitassem dar vivas à República. Com o tempo, fomos apreciando pantomineiros. Na política, na literatura, na vida pública – mas nunca passaram de pantomineiros. Eles sim, estavam (e estão) em circulação. É um grande cansaço.

in Domingo - Correio da Manhã - 6 Fevereiro 2011