domingo, novembro 28, 2010

Antecipando o Natal, com ironia

Chegados a Novembro, o velho Doutor Homem, meu pai, achava que o ano tinha terminado. Dezembro era um mês pedido emprestado ao novo futuro, não porque passasse três semanas a congeminar as festas natalícias – a que ligava pouco – mas porque o enervava a hiperactividade dos outros. Como nós sabíamos, ele recolhia-se em Novembro e só saía desse período de hibernação quando a vida voltava ao normal.

Ele não viveu este tempo em que as festas de Natal começam na primeira quinzena de Novembro, com uma musicalidade irritante ferindo os ouvidos dos transeuntes ou, apenas, assaltando os ouvintes de rádio. Já se sabe que “o ataque ao Natal” é uma guerra impopular e perdida desde o começo; mas não custa nada relembrar que a prosperidade comercial da quadra natalícia é uma das doenças contemporâneas mais cruéis: à medida que “a quadra” se alarga, como as margens de um pântano musical, feérico, colorido, cheio de sinos tiritando às primeiras geadas, mais significado perde o Natal propriamente dito.

Este ano, as minhas irmãs anunciaram que, mal se aproxime o Natal, partirão para temperaturas mais amenas. É uma decisão que contraria o bom-senso, mas que se compreende à luz do cansaço do Natal, uma epidemia que antecede a data e a assassina a golpes de fealdade. A imagem do velho Natal de província, adocicado pela lembrança do musgo, do orvalho, da neve, da mirra e do incenso, das ceias familiares, é um quadro contemporâneo da construção do Titanic. Depois de assinalar o nascimento de Cristo, o Natal passou a ser “a festa da família”, o que nos baralhou as contas uma vez que os Homem organizam a sua festa em pleno Verão, desabrigados e acalorados, entre limonadas e vinho verde de Ponte de Lima.

O velho Doutor Homem, meu pai, poupou-se a tudo isto. Reunida a bibliografia, escolhidos os discos e arrumada grande parte dos assuntos profissionais, encarava Dezembro com a leveza de um irresponsável que vê o Natal aproximar-se sem sentir o temor da data nem a reverência pelas reuniões familiares, em tardes de dias feriados passadas diante da lareira e terçando armas consoante os assuntos do momento. Suponho que este ano lhe seguirei os passos. Enquanto as minhas irmãs fogem para o Sul, procurando um lugar onde não haja sinos e promessas de presentes perdulários, eu irei recolher-me à biblioteca (o nome que em casa se dá ao armazém de livros que a minha sobrinha declarou ‘zona interdita’ a estranhos) aguardando a chegada da procissão familiar. Cumprirei o meu dever.

in Domingo - Correio da Manhã - 28 Novembro 2010

domingo, novembro 21, 2010

Uma história natural das fronteiras galegas

Depois da abertura das fronteiras, a Galiza ficou mais próxima, como me advertem os especialistas em tudo. Não vejo nisso vantagens incomparáveis – a Galiza, a terra de D. Álvaro Cunqueiro, de D. Ramón Otero Pedrayo ou da Filarmónica do Lugo ficava bem assim, tremenda e negra, escura, do outro lado do Minho, com os seus polícias de tricórnio, as suas lojas de ‘Ultramarinos’, as livrarias húmidas e eruditas de Santiago de Compostela, o seu linguajar constante e rouco, perfumado de maus tabacos e de cafés de contrabando.

De facto, não vejo grandes vantagens em não fazer aquela amável pausa entre Valença e Tuy para sinalizar a existência de uma fronteira. A província magnífica foi, ao longo dos anos, um gigantesco ‘mesón’ onde os Homem de várias condições se apresentavam cheios de apetite e de um vasto anedotário historiográfico capaz de fazer indignar a corte de Madrid. Mas não era por mal, nunca foi por mal – pelo contrário, havia na travessia das fronteiras um acto de amor quase apaixonado, subtil, picuinhas, dedicado, matreiro. Ir à Galiza, depois da abertura das fronteiras, passou a banalizar não só a Espanha como, também, a Galiza como refúgio de portugueses que “iam ao estrangeiro”. A Galiza deixou de ser “estrangeiro” sem passar, em simultâneo, a ser “a mesma terra” – porque nos separam coisas triviais ou profundas que sempre nos devem continuar a separar para que mantenhamos, precisamente, a vontade de atravessar a fronteira para ir à Galiza.

De Moledo até lá, convenhamos, a distância é curta ou, mesmo, nenhuma. A olho nu, do promontório de Moledo, interpretado pela Ínsua, a Galiza é uma cidade vizinha e disponível para ser atravessada, em busca de silêncio nas montanhas, de anonimato nas ruas, de amêijoas de Villagarcía de Arousa ou de literatura em livrarias adormecidas numa Plaza Mayor para onde o Inverno acaba por transportar todas as neves de Astorga. Não me comove, pois, esse cosmopolitismo que tratou de abolir fronteiras como se, pelo gesto, transformasse o desconhecido em conhecido, o inacessível em acessível, o antigo em moderno. A minha Galiza é antiga – nela passeava-se D. Gonzalo Torrente Ballester nas ruas de El Ferrol e ouviam-se marchas de gaita e sanfona adaptadas das pautas líricas e patrióticas de Pascual Veiga. A fronteira nunca me incomodou. Estava lá, invisível sobre as montanhas de pinheiros e carvalhos de outras eras. Havia um vento galego que anunciava frio e uma corrente do sul que prometia chuva; tirando isso, tudo devia ser registado na fronteira para que soubéssemos que estávamos onde estávamos, sem mentirmos uns aos outros.

in Domingo - Correio da Manhã - 21 Novembro 2010

domingo, novembro 14, 2010

O crédito que temos no outro mundo

As “contas públicas” são, na família, um tema recorrente desde 1916. Foi nesse ano que um tio nosso, um lente de Direito, esteve umas semanas de Primavera ocupado a desenhar o plano de contas do governo dessa altura – e que, necessariamente, durou pouco. O meu avô foi condiscípulo de Domingues dos Santos, que viria a ser primeiro-ministro terminal da República, no Instituto Superior do Comércio do Porto; enquanto um se juntou à Maçonaria e ao bolchevismo, o meu avô cuidou da vida e fundou uma empresa de contabilidade e administração em que impôs a regra de não abrigar nenhum membro da família, para não que não se perdesse nem a empresa nem a família.

Mas as “contas públicas” foram, desde esse ano, debatidas periodicamente, sempre com o ressentimento do espoliados – os contribuintes. Não havia centavo ou escudo gasto pelo Estado que não tivesse, por parte dos Homem (seres domésticos, cordatos e de boas contas), a reivindicação de uma nota de crédito correspondente ao gasto. O segredo da boa contabilidade não era, explicava o meu avô, o correcto registo das despesas e das receitas, nem sequer das receitas a haver ou das despesas consentidas para um dado período – mas sim o aforro garantido para anos de desgraça, que viriam no futuro. Este princípio é seguramente tão reaccionário que não foi seguido por nenhum dos governos da democracia, contemporânea e companheira das instituições de crédito e do direito de todas as classes ao endividamento.

A minha sobrinha Maria Luísa anunciou na semana passada que deixará de usar cartão de crédito. Fê-lo sem solenidade, ao correr da conversa, aproveitando a torrente de notícias sobre o endividamento português, cuidando que, no meio de tantas dívidas e de tanto debate sobre o crédito, as suas pequenas nódoas passassem despercebidas. Isto aconteceu numa das visitas ao nosso restaurante preferido de Moledo, o Ancoradouro. A declaração de Maria Luísa compreende-se; faz parte de um plano divino para recuperar almas temporariamente perdidas nos escombros da vida moderna. Que eu o pensasse era uma coisa; mas dizê-lo foi um excesso. A doçura de um vinho antigo (um luxo semanal que o meu médico de Viana autoriza), a penumbra vespertina que entrava pelas janelas, o último sabor de uma sobremesa que tinha percorrido a mesa, fizeram o resto. Maria Luísa bebeu o que lhe restava do seu vinho do Douro e comentou: “Só temos crédito noutra vida, vai-me parecendo.” Ainda pensei em sorrir, mas poderia parecer ironia.

in Domingo - Correio da Manhã - 14 Novembro 2010

segunda-feira, novembro 08, 2010

As agruras do clima e o elogio da preguiça

O frio é um elemento de civilização, dizia o velho Doutor Homem, meu pai, que não conheceu as objecções contemporâneas à palavra “civilização”. A minha sobrinha Maria Luísa acha que o termo tem muito a ver com “a mania de os europeus se julgarem o centro do mundo”. Creio que isso se deve à existência de calor na Tailândia ou nas Caraíbas quando em Viana do Castelo ou em Colónia se pressente um inverno polar e rigoroso – e de nós valorizarmos mais a fina camada de geada nos pinhais dos Arcos de Valdevez do que as bagas de suor que esvoaçam em Singapura, nos sertões africanos ou à roda do Cairo. Acontece que o mundo do velho Doutor Homem, meu pai, tirado certas ocasiões de desacordo, se limitava à velhíssima Europa. Na família, além das recordações do Tio Henrique, o mais exímio e apaixonado dos instrumentistas de oboé de todo o Alto Minho – que sonhava com os grandes planaltos de África e suspirava pelas campanhas pelas savanas, picado pela malária ou atormentado pelo degredo –, só o meu tio Alberto, o bibliófilo de São Pedro de Arcos, podia dar-se ao luxo de viver fora deste mundo, ou seja, fora da Europa (ele namorava com uma princesa russa, como se regista nos álbuns de família). Mesmo assim, quando recebeu D. Camilo José Cela no seu refúgio das montanhas foi ovos com chouriço e sardinhas fritas que preparou ao escritor, para se vingar do desprezo a que D. Ramon Otero Pedrayo tinha sido sujeito. De modo que somos o que somos, e o nosso termómetro assinala variações conformes.

O frio, justamente, regressou às nossas províncias – por um dia ou dois, é certo, e ainda sem a inclemência do Grande Inverno que descerá em breve das serras. Ele serve para nos avisar de que estamos de passagem de um ciclo a outro. Mal vinha a aragem de Outono, o velho Doutor Homem, meu pai, começava a cismar e, por vezes, remoía acerca de como a eternidade não é de fiar. O velho causídico era um maroto, como sabia toda a família – sob a capa faustosa e melancólica do filósofo de fim de semana, estava ali um sátiro que detestava o romantismo de fim de estação, tanto como as frases demasiado longas e encavalitadas. O frio acomodava-o e favorecia-lhe a preguiça a que se permitia depois das grandes refeições ou antes delas; permitia-lhe gozar longas horas de leitura enquanto chovia e os elementos se indispunham. Era o seu grande momento de civilização. Sem o dizer, era, no fundo, um elogio da preguiça.

in Domingo - Correio da Manhã - 8 Novembro 2010