domingo, outubro 31, 2010

Sobre a modernidade e os mistérios do sexo

De entre as minhas poucas atribuições, ao longo da vida, nunca me calhou ter de reflectir sobre a educação sexual dos mais novos. Não o lamento. O assunto não oferece grande discussão na minha biografia recente, consagrada a envelhecer e, ao mesmo tempo, a manter relações razoáveis e amigáveis com a humanidade que habita nos arredores de Moledo – o que significa que vai além de Tuy e se aproxima da margem direita do Douro.

A Tia Benedita, que só conheceu a minissaia por ouvir dizer (a década de sessenta não foi muito cosmopolita entre os arvoredos e prados de Ponte de Lima), nunca discutiu assuntos morais; limitava-se a viver a sua vida. Já o velho Doutor Homem, meu pai, que era um cidadão discreto e muito ciente do seu terno com guarda-chuva, tinha na sua biografia vastas e prolongadas estadas em Paris e Londres – e se as ilhas britânicas eram a sua referência política para todos os males da pátria, é mais do que provável que pensasse em Paris quando a consciência lhe pedia que fizesse um resumo da sua devassidão.

Hoje, a devassidão deixou de ter aquele tom de subtileza amável que consubstanciava a expressão "vícios privados, públicas virtudes". Sempre me pareceu correcta a ideia de que os vícios teriam, necessariamente, de ser privados; a hipótese de serem praticados em público retirava-lhes não o, digamos, "picante", mas, vá lá, o "carácter". A expressão foi glosada durante as últimas décadas para mostrar que existe – uma descoberta desnecessária – hipocrisia no mundo. Acontece que também acho positiva e saudável a existência de um módico de hipocrisia e de coisas escondidas do comum dos mortais, nossos semelhantes. É isso, justamente, que faz de nós os seres perversos que, com grande felicidade, realmente somos.

A educação sexual nas escolas parece-me uma moda herdeira dos anos de ouro do ié-ié, e é provável que fique. A "modernidade" acha que os velhos nunca ou só raramente falavam de sexo; dá-se a si mesma o crédito de ter descoberto coisas que existiam desde que Adão e Eva experimentaram o pecado. Desde esse momento só temos vindo a aprender, sempre a aprender, nem que seja a arte de fingir que estamos a aprender coisas novas sobre "os mistérios do sexo".

Na verdade não aprendemos nada de realmente novo. Antigamente, estas matérias eram do foro privado, cobertas por manto de hipocrisia – e, melhor ainda, de fantasia. Para o domínio público reservávamos o mais enfadonho de nós mesmos, as virtudes. Era uma grande vida.

In Domingo - Correio da Manhã - 31 Outubro 2010

domingo, outubro 24, 2010

O mal de amor e a chegada do Inverno

A minha sobrinha Maria Luísa, que vive em Braga cuidando das casas dos seus clientes ricos, cuida que há paixões demolidoras, capazes de figurar na galeria da eternidade. Como nos separam cinquenta anos, limito-me a concordar como se o tema me ultrapassasse e fosse uma espécie de metafísica inacessível a um velho reformado dos assuntos de direito bancário. À falta de uma paixão sucederia a existência de outra, nem sempre a ideal; e da falência de outra haveria de passar-se à busca de uma nova, que garantisse que o mundo continua a ser, desde o tempo em que existiam os quatro rios do paraíso, um terreno disponível para florir quando nos dá jeito. Que eu me lembre, só Camilo Castelo Branco, que não amava, verdadeiramente, soube lançar maior descrédito do que eu sobre o assunto. Isto, em que o leitor pode vislumbrar a vaidade de um velho, é apenas o reconhecimento de uma deficiência orgânica. A ironia cega, a paixão enlouquece, o amor perdura, o cinismo magoa, o desencanto apaga-nos: é este o resumo da história da humanidade que procura o amor verdadeiro.

Tentei explicar a Maria Luísa que, de verdadeiro, só há ordens para pagar impostos ou a poeira velha que paira sobre os anos avançados; o amor verdadeiro passou quando o recordamos mais tarde, como uma floração tardia. No tempo em que podia gastar a minha juventude sofria-se de amor, respondiam-se cartas, faziam-se planos, amantes fugiam pelas veredas da noite, famílias conservadoras mas comovidas abrigavam casais em fuga, padres de província desafiavam a moral – e não se procurava o amor verdadeiro. Ele viria.

Por exemplo, eu esperei pela sua chegada durante anos e anos depois de ter fenecido a memória de um grande desgosto. Veio um, veio outro, veio outro ainda, e ainda um outro – nenhum deles apagou a doçura daquele sofrimento antigo e amargo, vivido sob a tepidez febril de uma temporada no Rio de Janeiro, em contacto com a leveza inacessível da vida e a incerteza da passagem do tempo. A felicidade era isso – e a sua contemplação.

Agora, diante do Inverno, recordo que ele começa verdadeiramente quando Dona Elaine autoriza. Até lá, a palavra não passa de uma metáfora com uso razoavelmente literário – porque não tem, a acompanhá-lo, o tradicional desfile de mudanças que o calendário exige e aguarda com curiosidade sobre a nossa vida. Nestas circunstâncias sou apenas um velho botânico comovido com os bolbos que hão-de florir daqui a seis meses. Nessa altura virá. Virá o amor, explico a Maria Luísa.

in Domingo - Correio da Manhã - 24 Outubro 2010

domingo, outubro 17, 2010

Acerca da riqueza e da vinda do Outono

O velho Doutor Homem, meu pai, protegia o nome dos seus clientes – empresários, como se diz hoje, que procuravam ajuda para os seus negócios no âmbito do então direito bancário. O meu avô, que administrava quintas e propriedades, mal mencionava os nomes dos seus vários patrões, uma lista generosa de ingleses e de portugueses que produziam vinhos no Douro. Havia, digamos, um certo ‘sentido de Estado’ quando se falava dos mistérios da propriedade e dos caminhos que levavam às contas bancárias. Havia um certo pudor na exibição da fortuna e dos seus sinais. Hoje, esses sinais são ‘exteriores’ e o pudor desapareceu grandemente. Proprietários ou ‘homens de negócios’, ‘cavalheiros da indústria’ (classe extinta há muito) ou ‘investidores’, o que a maior parte deles queria era recato. Compreendia-se: o catolicismo educara o país para ser remediado e culpado; o regime do dr. Salazar não gostava de ostentação. E, na verdade, nem toda a riqueza era pura como o suor que caía do rosto mortificado pelo trabalho, pela perseverança e pelo sacrifício.

Muitos desses ricos do meu tempo, os velhos ricos de outrora, pagaram escolas e estradas, chafarizes e hospitais temporários, bibliotecas e bolsas de estudo. A alguns assustava o complexo de culpa judaico-cristão, uma expressão que a minha sobrinha Maria Luísa popularizou em casa, estendendo-o para justificar tanto a abstinência como o excesso; a outros, assaltava-os o passado de penúria que pretendiam redimir; a outros, suspeito que se tratava de vaidade e pura vontade de mostrar o dinheiro entretanto ganho.

Não sendo “pecado fatal”, a fortuna de antigamente era mais sólida e mais discreta. As camisolas de lã dos nossos vizinhos da velha Foz portuense, que tinham fiações em Famalicão e Lanhoso, eram tricotadas à mão por umas tias de Gondarém, e duravam longos invernos sem serem substituídas. Os ricos de hoje mudam de guarda-roupa várias vezes ao dia e não sabem que o vestuário de uma estação se há-de guardar para a do próximo ano, e que não se pode trocar de carro de dois em dois anos.

O demónio da velhice tocou-me e veio acompanhado pelo da parcimónia, que é reaccionário e cheio de prelecções sobre o aforro e a temperança. Acontece pelo Outono, segundo parece. Ricos e pobres, não somos todos iguais diante de Outubro. O mar de Moledo, nesta época, convida-me à melancolia mas não à tristeza. Fui buscar a gabardina ao armário; uso-a há doze anos, Outono sobre Outono, esperando a bênção da chuva e do calendário.

in Domingo - Correio da Manhã - 17 Outubro 2010

domingo, outubro 10, 2010

Uma barreira contra a vulgaridade

A República não comove a família. Parte dela ainda vive antes do Constitucionalismo e considera o general Azevedo e Lemos, que assinou a Concessão de Évora Monte em nome do Senhor D. Miguel, um herói no condicional – mas é por birra. Na realidade, não vivem nesse tempo; limitam-se a viver em silêncio. São de outro tempo qualquer; guardam as suas memórias e as suas honras, os seus retratos, os cálices de Porto, as suas bibliotecas poeirentas, as colchas com as cores legitimistas, como se tudo isso fossem elementos que transportam para a posteridade o travo da derrota. A derrota ilumina o carácter e educa o espírito para os bons e os maus momentos. É uma aprendizagem difícil, a desse silêncio de quase dois séculos. Por isso, a República não chega a comover a família.

Nos Arcos de Valdevez, o regime do dr. Afonso Costa só chegou uma temporada depois. A mesma coisa em S. Pedro de Arcos. Ponte de Lima, ao pé disto, era uma jóia do cosmopolitismo. Amanuenses, pirómanos, comerciantes do centro de Braga, jornalistas do Porto, frequentadores dos Fenianos, militares de carreira, radicais de toda a espécie – a República não comoveu os que tinham previsto os passos seguintes.

O meu avô, administrador de quintas do Douro, amigo dos ingleses, também previu a existência de uma figura como o dr. Salazar; o velho Doutor Homem, meu pai, abominava-o; a Tia Benedita nunca guardava lugar para o escândalo, porque a vida não era feita de surpresas, mas de repetição e de derrotas – com a República, até o dr. Salazar podia ser ditador. O seu fatalismo não a amargurou; pelo contrário, era o bálsamo que oleava o pêndulo das coisas e a tornou imune às catástrofes. Pessimista sem ter lido os filósofos, a Tia Benedita é a grande figura de um hipotético “romance de família”, precisamente porque não é heroína, não a cerca a glória nem a vaidade. Apenas a ideia de que só podia ser pior.

Ao contrário da República, que vinha acompanhada de adjectivos, de pontos de exclamação e de loas ao futuro, a Tia Benedita só temia que o dr. Afonso Costa viesse roubar as igrejas do Minho. Dizia-o por despeito e por obsessão. Na verdade, ela também detestava o Constitucionalismo e a monarquia moderna, cheia de funcionários públicos, de vates iletrados e de românticos nas secretarias e repartições, pálidos, tuberculosos e a cheirar a colónia espanhola. Detestava a burguesia que fazia as revoluções e que as manobrava por impulso erótico, como um vício que precisavam de alimentar. Todos os anos a lembro, no 5 de Outubro, como uma barreira contra a vulgaridade.

in Domingo - Correio da Manhã - 10 Outubro 2010

sábado, outubro 02, 2010

Os casamentos de outrora

Quando o filho Domingos partiu para o Brasil em 1932, depois de um desgos­to amoroso que resultou num casamento anulado à pressa (mas com antecedência suficiente a fim de não causar escândalo – coisa que se repetiria na família quase vinte anos depois), o avô achou que tinha cumprido o essencial da sua vida: tinha uma famí­lia, guardava alguns hábitos de patriarca, deixara a política, enviu­vara cedo, não enriquecera demasiado nos negócios e considera­va o dr. Salazar um contabilista aceitável mas demasiado metido consigo mesmo. Ao contrário da presciência snobe do velho Doutor Homem, meu pai (que con­siderava as botas do dr. Salazar uma obra-prima da “Saville Row de Santa Comba Dão”), o meu avô teve – nas discussões domés­ticas – uma certa inclinação a apoiar o deve e haver do lente de Coimbra, embora desconfiasse alegremente do seu celibato (é uma maneira de dizer) e daquela vida consagrada à dieta e ao apaziguamento dos professores de Coimbra.

Os casamentos dos Homem foram sempre um mistério de solidez, razão por que há tantas histórias de celibato na família – ou de estroinice, como garantia a tia Benedita, a guardiã da fama miguelista de Ponte de Lima. Queria isso dizer que, ou havia casamento ou havia pecado – a opção era maniqueísta mas fez escola. O Tio Domingos não se livrou da fama, e regressou do Pernambuco, muitos anos depois, coberto do rumor do pecado tanto como das picadas de insectos do sertão. Pelos anos fora, a família conheceu, timidamente primeiro, com indiferença depois, vários divórcios que nunca passaram de uma nota de rodapé (curta, como a vida dos hibiscos) nas conversas ao almoço de domingo. Acontece que eu não casei – nunca – e o facto não requer muitos comentários ideológicos nem uma cosmologia apropriada; simplesmente, não aconteceu, primeiro por uma vaga tragédia da juventude, depois por comedimento, por calculismo e, naturalmente, por comodismo puro. Às minhas irmãs explico que me limitei a considerar os casamentos de outrora como uma viagem sem regresso – e que os casamentos modernos não vão com o meu feitio, de tal modo os acho um castigo superior à minha capacidade de resistência.

A minha sobrinha Maria Luísa insistiu por duas vezes na prática do matrimónio e chegou ao ponto (sem dúvida atingindo os limites da boa-fé) de pedir-me conselho. Ela ignora que por detrás da tolerância desprevenida que faço questão de exibir, está um indiferente em matéria de casamento; acho que é uma coisa útil para romances com mais de trezentas páginas – mas não vou agora arrepender-me da felicidade que conquistei.

in Domingo - Correio da Manhã - 3 Outubro 2010