domingo, setembro 26, 2010

O Zeitgeist em Moledo ou a modernidade

Chegado a esta idade, não tenho energia para explicar a natureza ou o conceito de ‘Zeitgeist’, “espírito do tempo”, que não roubo – em alemão – a Hegel mas a alguém que mo explicou a partir de Hegel. Isso foi há muito tempo, mas a ideia permanece: a de que as ‘coisas’, o pensamento, as atitudes de uma época definem o ‘Zeitgeist’, “espírito do tempo”. O velho Doutor Homem, meu pai, achava que o “espírito do tempo”, qualquer que tivesse ele sido na altura, estava errado e não valia a pena discutir com ele. A atitude é compreensível; desde a Concessão de Évora Monte e o embarque do senhor Dom Miguel, em Sines, que os Homem de todas as latitudes achavam que o mundo estava errado. Hegel era apenas um pormenor que não chegava a ser empecilho. Os Homem sobreviveram muito bem sem o génio de Heidelberga e Berlim, clamando que as terras do Alto Minho tinham filosofia de sobra, e copiosamente.

Ora, “o espírito do tempo” é uma espécie de desculpa redundante para todas as catástrofes dos últimos duzentos anos, do pré-romantismo português aos campos de concentração russos e alemães, do telemóvel à arquitectura de Le Corbusier. Definido “o espírito do tempo”, ai dos que lhe resistem.

Para os optimistas, “o espírito do tempo” é sempre um avanço na procissão do género humano em direcção à felicidade, e o “progresso” é uma espécie de inevitabilidade. Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, desconfia do tema e da conclusão mas, influenciada pelas telenovelas (que traduzem maravilhosamente “o espírito do tempo”), há-de ficar periclitante e será, um dia, capaz de admitir que o amor livre, o fim da família tradicional, a mudança de sexo e os romances mal escritos são etapas desse progresso geral da humanidade.

A minha sobrinha Maria Luísa já achou, em tempos, que o mundo caminhava para a perfeição – mas hoje tem dúvidas. Na semana passada anunciou que a internet era uma invenção útil, tirando o facto de que anda a estupidificar-lhe as crianças. Expliquei, com a cautela de um oficial de diligências, que nem todo o “progresso” é um avanço na direcção da felicidade e que nem todas as mudanças são positivas – raras vezes são úteis, e geralmente são um transtorno que acaba por tornar a vida num inferno.

Foi então que invoquei a existência de um ‘Zeitgeist’, “espírito do tempo”. Os optimistas e eleitores socialistas acham que não podemos fugir-lhe, que temos de nos “actualizar”, ou deixa de haver “progresso”; nós, os cautelosos, temos dúvidas. Estamos habituados a perder.

in Domingo - Correio da Manhã - 26 Setembro 2010

domingo, setembro 19, 2010

Coisas que são como um vendaval

A minha sobrinha Maria Luísa entrou em casa, no último fim-de-semana, com um instrumento electrónico que permite ler livros num ecrã. Ela vinha de Braga, lugar de onde continuam a surgir todas as grandes novidades, e onde o dinheiro – no tempo de Camilo tal como no tempo do dr. Barreto Nunes – continua a circular para o bem e para o mal. Refiro Camilo Castelo Branco e o dr. Barreto Nunes porque ambos têm os seus nomes ligados à bibliofilia. O dr. Barreto Nunes continua, a par da dra. Celina, da biblioteca de Vila Praia de Âncora, a ser uma preciosa ajuda quando se trata de reconstruir um índice bibliográfico, uma espécie de labirinto para o qual os meus olhos já não têm a aptidão necessária, nem o meu temperamento (uma das designações para a idade, propriamente dita) a paciência requerida.

A bibliofilia não é uma obsessão – é, antes, um modo de vida. O velho Doutor Homem, meu pai, sempre soube que a leitura não trazia a felicidade a nenhum lar, razão por que guardava para si (e para a sua solidão) os momentos de tranquilidade reservados à biblioteca, poupando a família a um espectáculo puramente privado e íntimo, e de onde não nasceria nada de grandemente útil para o Produto Interno Bruto da pátria (na época não se mencionava o assunto). Por isso, diante destas demonstrações de alfarrabista soturno, a minha sobrinha é um vendaval de modernidade, disposta a adaptar-se aos novos tempos com o talento de uma vencedora sobre o tempo e a história. Ela não gosta da expressão porque, num resto de memória traída, defendeu em tempos que só o proletariado iria triunfar sobre ambos.

Antigos e rigorosos esquerdistas converteram-se em gastrónomos ou em arautos da era tecnológica sem remorso nem expiação – que os livros possam, agora, ser lidos num ecrã, como antigamente assistíamos ao TV Rural do sr. Eng.º Sousa Veloso, não parece trazer-lhes grandes hesitações. O mundo vive em convulsões permanentes e não é em Moledo que se erguerá uma barreira definitiva contra a insanidade. Ao ver o forte da Ínsua e a derradeira esplanada que resiste ao nevoeiro matinal (uma imagem que o nosso provincianismo deve ao dr. Anthymio de Azevedo), lembro ao leitor que continuo a escrever à mão e a usar lápis Viarco n.º 2 para anotar a margem das Memórias de Raul Brandão. Estes vícios são incompatíveis com um país que avança definitivamente para o mundo moderno, convertido à leitura de livros electrónicos quando ainda nem sequer sabe soletrar as orações de um período simples de Fernão Mendes Pinto. A vida não é simples.

in Domingo - Correio da Manhã - 19 Setembro 2010

sábado, setembro 11, 2010

Uma teoria sobre as novas gerações (2)

Ao fim de alguns meses de combates e de avanços da “coluna alemã” fui admitido ainda jovem à mesa onde, na velha casa portuense, se decidiam os destinos da II Guerra – o meu avô disputava com o velho Doutor Homem, meu pai, o papel de grande estratega britânico diante do desvario da Europa Central, ocupada pela Alemanha. Ambos eram, pois, “dos ingleses”, o que significava, também em ambos os casos, uma mitomania que só terminaria em meados de 1940, quando a França sucumbia sob o disfarce termal de Vichy e quando o termo ‘Blitzkrieg’ se tornou familiar e significava, antes de mais, a ameaça sobre Inglaterra depois da batalha de Dunquerque. Das Ardenas, primeiro, aos desertos da Líbia e à ocupação africana depois (o nosso vocabulário nunca seria o mesmo depois de termos pronunciado ‘Afrika Korps’, ‘Rommel’ e ‘Raposa do Deserto’), a família discutia com paixão sobre cartas geográficas.

Ser admitido nessas discussões não significava, no entanto, participar activamente nelas. Era necessário um exame prévio que detectasse alguns conhecimentos mínimos de história, de geografia, de armamento e de inglês (o alemão era dispensável, no entender do meu avô, que chorava pelo destino de alguns clientes holandeses que, no Douro, continuavam a produzir vinhos e azeite).

Quando, certo dia, foi necessário compreender a importância de Creta e Malta para o desenrolar das coisas a norte e a sul da faixa do Mediterrâneo, o velho Doutor Homem, meu pai, recomendou-me bibliografia “até para não atrasar as movimentações”. Eu tinha, enfim, compreendido a inevitabilidade dessa preparação. Passei, então, a disputar a leitura dos jornais da casa, sobretudo depois de a Rússia ter entrado nas contas do fantasma de Berlim. Recolhi ao meu quarto (que dividia com um dos meus irmãos) rodeado de mapas, bibliografia e um boné inglês como amuleto.

Contei o episódio, em família, há poucas semanas. As “novas gerações” perceberam que houve uma guerra, exactamente como eu tinha a certeza de ter existido uma Guerra dos Cem Anos, uma Guerra da Independência ou uma batalha de Waterloo. Lá, longe (os franceses estavam-nos atravessados, como a vanguarda da serpente “democrática”). Esse período dramático indispôs-nos contra o desperdício, a ignorância e a leviandade. A vida tinha um peso dramático e cada segundo de vida era vivido romanticamente, como Ingrid Bergman em ‘Casablanca’. O nosso momento podia chegar – e não nos apanharia desprevenidos. Sabíamos tudo sobre a queda de Danzig e a anexação dos Sudetas.

in Domingo - Correio da Manhã - 11 Setembro 2010

domingo, setembro 05, 2010

Uma teoria sobre as novas gerações (1)

Vejo que, na imprensa, se multiplicam as crónicas assinada por psicólogos preocupados com a educação da mocidade. Uso o termo “mocidade” porque não sei como classificar a escala de idades que vai entre os cinco ou seis e os dezoito anos. De resto, os meus conhecimentos de puericultura e dessa ciência de perfis esotéricos, a pedagogia, resumem-se a quase nada. O velho Doutor Homem, meu pai, tratava os seus filhos com alguma distância, o que significa, para a literatura do género (segundo entendi), alguma frieza. Nunca nos lamentámos muito: na maior parte das noites da semana, depois do jantar, retirava-se para o seu refúgio pessoal (a biblioteca) ou, então, participava nas actividades familiares com alguma relutância. Saía dessa monotonia para as suas partidas semanais de bridge, para as férias de Verão e para os domingos de passeio no Minho.

A minha sobrinha Maria Luísa enfrenta dois pré-adolescentes ruidosos – que Dona Elaine anunciou, por várias vezes, querer vender, a peso e por atacado, na feira de Caminha – que, dizem os especialistas, requerem cada vez mais “diálogo”. Maria Luísa diz que o assunto lhe causa um certo calafrio porque, tirando as conversas sobre como vão os estudos, sobre a vida moderna em geral e sobre a necessidade de tomar banho e escovar os dentes de maneira apropriada, não sabe sobre o que há-de dialogar, não só porque eles se comportam como se comportava o velho Doutor Homem, meu pai (retirando-se para os seus aposentos), mas também porque se recusam a dialogar sobre o que ela, legitimamente, quer dialogar – suponho que sobre assuntos mais interessantes do que jogos de computador.

O tema geral foi tratado, de passagem, durante o almoço do último domingo, com participação de várias gerações que nem por isso ficaram apreensivas, o que é compreensível numa família que se prolongou razoavelmente na escala do século passado sem ter alguma vez pronunciado a palavra “pedagogia”. Na verdade, o que o velho Doutor Homem, meu pai, nos providenciou largamente foi uma enorme disponibilidade para escolhermos os nossos acidentes de percurso – desde que nos apresentássemos à mesa a horas certas e com os cabelos em ordem, estando definido que os trabalhos escolares e a aprovação nos exames eram coisas adquiridas. O meu pai recompensava com displicência e punia sem moralismos, economizando nas coisas supérfluas. Raramente se dispunha a dialogar, embora falasse abundante e largamente connosco – e nos ouvisse como um cavalheiro. Isso significava, apenas, que não estava na disposição de discutir o sistema de travões de uma bicicleta.

in Domingo - Correio da Manhã - 5 Setembro 2010