domingo, agosto 29, 2010

Sobre a idade, uma desculpa

sociedade não funcionaria se não houvesse obrigações. A evidência é tão grande que tenho vergonha de mencioná-la. O velho Doutor Homem, meu pai, admitia que tinha falta de paciência para explicar tudo o que devia explicar. A tradicional vaidade dos Homem, de que padeço em conformidade, é apenas um sintoma dessa misantropia. “Paciência, paciência”, recomendava Dona Ester, minha mãe, que entendia a necessidade de disfarce e de alguma contenção para que a vida em sociedade não se transformasse num combate sem utilidade nem proveito.

Explicar duas ou três coisas sobre a implantação da República, por exemplo, é inútil hoje em dia. A história, sabe-se com certeza desde el-rei D. João, é escrita pelos vencidos; o centenário da República está a ser comemorado mais com adjectivos e advérbios do que com a fotografia da época. A Tia Benedita, que nasceu sem paciência, temeu até ao fim da vida o regresso de Afonso Costa, a quem ela atribuía a intenção de assaltar Guimarães para roubar, pela segunda vez, a Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira (que ela viu reabrir em 1967, um ano antes de morrer). Por mais que lhe explicássemos que o demagogo tinha falecido em Paris e que não regressaria tão cedo, a senhora não sossegava e valia-se da idade: “Na minha idade já não discuto essas minudências.” A frase é exemplar e dá conta do alto valor que a Tia Benedita dava à vida depois da morte, mas, sobretudo do valoroso combate que travou pelo seu direito a não ter paciência para discutir a data do passamento de Afonso Costa.

Com o Verão, o direito a não ter paciência alarga-se até às fronteiras do desrazoável. Dona Elaine, que guarda alguma compaixão para a quadra (ela acredita, erradamente, que fui feito para o Inverno e para os agasalhos junto do fogão), acha que já perdi o norte dos princípios morais e que fico agradado com as amigas dos meus sobrinhos, que conversam na varanda, de biquíni. Tento esclarecê-la: que na minha idade os princípios morais são muito comoventes mas não explicam o romantismo de um velho rodeado de coisas proibidas. Um destes dias, uma das jovens, extasiou-se, prostrada diante das estantes da biblioteca. Eu julgava que era por causa dos livros. Mas não. Ela não percebia como podia eu ser um velho miguelista por tradição e, ao mesmo tempo, guardar tamanha vaidade dos meus livros. A minha sobrinha Maria Luísa saiu da sala para evitar sorrir. Limitei-me a explicar-lhe que me sirvo deles para acender a velha salamandra no Inverno, o único destino que os reaccionários dão aos livros. Ela assentiu.

in Domingo - Correio da Manhã - 29 Agosto 2010

domingo, agosto 22, 2010

As árvores do apocalipse

Dona Elaine, a governanta deste eremitério de Moledo, acha que os incendiários deviam ser lançados no mar de chamas que provocam. Di-lo contemplando as nuvens de fumo que sobem e descem pelas montanhas, elevando-se nos ares entre a cinza que aterra sobre as casas. Ela nasceu em Roboreda, na colina que desce da serra sobre Cerveira, e mesmo tendo emigrado – em criança, com a família – para o Rio de Janeiro, nunca esqueceu os pinhais que iluminavam, à distância, o rio Minho e a velha aldeia a que regressou, jovem viúva, disposta a gozar algumas arrecadas.

A ideia de felicidade, na chamada grande literatura, não existia se não houvesse grandes florestas; as árvores não só embelezavam o universo como eram, também, guardiãs de segredos incomunicáveis. Árvores que nasciam, cresciam e perduravam – raramente morriam. A minha existência como botânico deve muito a esses livros onde as florestas eram descritas como oceanos luxuriantes (todo o arvoredo precisava de um adjectivo), fontes de sombra, tranquilidade e contos de fadas. Mesmo dispensando estes últimos, restavam as árvores. O meu Minho juvenil, tanto como o meu Minho da idade madura, eram pródigos em arvoredos protegidos e elogiados, à excepção do aroma adocicado das mimosas na velhíssima estrada de Viana (que hoje já não existe e foi substituída por um nó de vias rápidas e auto-estradas).

Quando me fixei definitivamente em Moledo, nos anos oitenta, havia, além do mar – e da sua grande razão de existir, o iodo –, outro motivo para a escolha: as árvores que rodeavam a casa, e tanto a assombravam como a protegiam. Elas recordavam-me a solidão feliz em que tinha vivido o Tio Alberto, o bibliófilo de São Pedro de Arcos, envolvido nas sombras que não perturbavam as suas recordações nem esgotavam o seu sentimentalismo. Vivo rodeado dessas árvores – mesmo daquelas que já não existem e foram sucumbindo, naturalmente. Dão-me sombra, dão-me cor, dão-me a sensação de que o mundo ainda pode continuar a existir entre as finas e modestas cordilheiras da Serra d’Arga e os vales do rio Âncora.

Os meus sobrinhos não assistiram a esse ciclo de árvores que nascem, crescem e perduram. Conhecem as suas fases terminais, o fim das florestas e o descrédito das montanhas consumidas pelos fogos. De certa maneira, habituaram-se a esta forma de apocalipse moderno em que não existem clareiras, trilhos entre freixos e carvalhos, a frescura antiga de um bosque. Dona Elaine lamenta-se, na varanda. Olha o mar, de costas voltadas para o mar de chamas.

in Domingo - Correio da Manhã - 22 Agosto 2010

domingo, agosto 15, 2010

O que fica depois de tudo

A minha sobrinha Maria Luísa anunciou que queria estudar o século XIX. O propósito é nobre mas, atendendo à estação do ano, parece-me ligeiramente estapafúrdio: no século XIX, e no início do XX, os verões eram recebidos com um guarda-roupa desmobilizador e ainda não havia época balnear.

Na nossa família, só Dona Ester, minha mãe, afrontou os costumes – ela acreditava que iodo, sol, pele bronzeada e areia espalhada pelo corpo eram indícios de uma saúde férrea que nos imunizaria contra o romantismo que sobreviveu à República e que tanto produzia bacharéis para as secretarias como clientes para os sanatórios. Um dos seus antepassados era um desses poetas que saudava os crepúsculos e as belezas pálidas do seu tempo (viveu em Coimbra, ai dele); não chegou a virar o século, vítima da tuberculose. Ela via na doença uma ameaça moral e literária que exigia combate, ciclismo, legumes, natação e alguma indiferença (vale a pena dizer que o velho Doutor Homem, meu pai, não achava a misantropia o pior dos defeitos). Eu era ligeiramente enfermiço, e tinha gripes de Inverno, antes de ser imunizado com temporadas de praia, amores passageiros e necessidades práticas, medicamentos de prescrição livre cuja posologia admitia aplicações bastante generosas.

Maria Luísa tem dúvidas em relação a esta narrativa das coisas. Ela entende que há um sentido na história e que o género humano pode estar sujeito a tropeções mas se encaminha para um zénite cheio fulgurações luminosas, de onde foram definitivamente banidas a pobreza, a homofobia, as monarquias, a televisão e todos os adversários morais do Bloco de Esquerda. Como não posso combater coisas que desconheço, limito-me a adverti-la de que o género humano seria muito mais feliz sem colesterol e que as monarquias não são tão desprezíveis como os massacres cometidos em nome da felicidade das nações.

Ela não sabe que um dos últimos governos da República, presidido por José Domingues dos Santos, achava que o bisavô Homem era um traidor à pátria porque ganhava o seu pão como administrador de quintas inglesas no Douro. O escritório foi tomado de assalto pela Guarda, que procurava promissórias e bombas debaixo dos tapetes. Salvou-o o facto de Domingues, um extremista incendiário, ser de Matosinhos (estudaram juntos no Instituto Superior de Comércio) e gostar do ‘vintage’ do Pinhão (de que seguiram duas caixas para Lisboa). Eis como se explica a história, segundo os Homem. Por haver vinho do Porto.

in Domingo - Correio da Manhã - 15 Agosto 2010

domingo, agosto 08, 2010

Moledo: para quem saboreia o passado

Por volta de 1934 – um dos meus irmãos nascera no começo desse Verão – Moledo praticamente não existia. O Minho, como hoje o leitor o conhece, não existia ainda. Eu tinha 13 anos e recebera uma bicicleta azul, soube depois que importada de França. A esta distância, recordo apenas como o Verão passou e chegou um Outono de nevoeiro que cobria a Foz que emocionava o velho Doutor Homem, meu pai. Os verões desses anos eram curtos e tépidos como uma folha incandescente do calendário. A metáfora não serve para explicar a sensação, mas lembra uma época: verões curtos, sombras de árvores, Ponte de Lima isolada do mundo e ouvindo rádio em ondas curtas num aparelho de válvulas que relembrava o nascimento do século. A família estava ainda em formação e o dr. Salazar assistira a uns desfiles no Tejo para relembrar o brilho de uma pátria convertida ao ditador.

Passados muitos anos, Moledo é uma pátria pessoal de que o país se evadiu. A minha sobrinha Maria Luísa educa os seus filhos na presunção de que tem de transmitir-lhes qualquer espécie de amor pelo passado. O assunto enternece-me. Ela é uma mulher deste tempo, fruto da educação liberal com que várias gerações aprenderam a viver no meio da desordem e falta de horários para se deitar à noite. Mas a sua tenacidade lembra uma ternura de romance francês, muito à século XIX, um nadinha melancólica, um nadinha dada à infelicidade. Velho miguelista sem esperança, contemporâneo do Titanic ou da inauguração da estrada marginal de Viana, sinto-me atraído por essa espécie de folhetim que colecciona ilusões e desilusões. Gosto de observar como Moledo – mais do que a ordem, o passado, a honorabilidade da velha praia para onde fomos transportados com manta e fato de banho, entre famílias que anualmente se deslocavam para venerar o iodo e as neblinas matinais – resiste à passagem e às reviravoltas.

Dona Elaine, a governanta deste eremitério, continua a achar que Moledo é a praia dos ricos. Das colinas de Reboreda, de onde partiu para o Rio de Janeiro com os pais emigrantes, Moledo era o reduto de uma aristocracia balnear que artistas como António Pedro ou Ruben Andersen Leitão interpretaram depois: o que a terra oferecia era uma beleza que não desistia de sê-lo. A sua excentricidade era tão natural aqui (num clima excêntrico) como os hibiscos que cultivo na varanda, à sombra dos pinhais. Por isso relembro 1934 e os anos antes da idade adulta. Na altura, Moledo praticamente não existia; é uma terra para a idade adulta, para o coração que amadurece e aprende a saborear o passado.

in Domingo - Correio da Manhã - 8 Agosto 2010