domingo, maio 30, 2010

Das cartas dos leitores à ideia de felicidade

Além dos grandes editoriais (antigamente, “artigos de fundo”) e das curiosidades sobre bibliofilia que incluíssem algum dos seus autores de sempre, o velho Doutor Homem, meu pai, coleccionava as páginas do ‘The Daily Telegraph’ onde vinham as cartas dos leitores. Descubro, entre as velhas pastas de recortes, uma ou outra que contêm o precioso material – reunido daria para um romance (na época não havia ainda “a sociologia”, essa ciência moderna que – dizia o velho causídico, descrente e céptico – “misturava socialismo e astrologia”).

Algumas delas mencionam o estado do tempo, dúvidas sobre palavras cruzadas e regras de etiqueta, reparos sobre minudências de história britânica ou diplomática (a data de uma batalha, um título adquirido na Índia, uma viagem através do Suez), receitas de cozinha galesa ou, até, protestos contra a excessiva cobrança de impostos. As cartas mencionavam o título nobiliárquico, se existia, académico ou político – e eram bem escritas; quase tão bem quanto as que, anualmente, o tio Alberto, bibliófilo de São Pedro dos Arcos, enviava aos jornais da Galiza a pronunciar-se sobre a qualidade das ostras de Ribadeo ou de Corcubión, ou aos três periódicos do Porto queixando-se do abandono das estradas de Paredes de Coura. Isso acontecia, lembrava a tia Benedita, porque “ele tinha tempo”. Não é totalmente verdade mas isso não explica a razão que levava o velho Doutor Homem, meu pai, a coleccionar essas cartas publicadas em jornais que dedicavam parte do seu espaço a polémicas fatais sobre problemas de palavras cruzadas.

Os meus irmãos e irmãs (que são optimistas por natureza) acham que a internet, os jogos electrónicos e as séries de televisão não contribuem para o atrofiamento do cérebro e que, pelo contrário – como os tempos mudaram – eu devo abster-me de falar de velharias que não se entendem hoje em dia.

Aos catorze anos, eu economizava dinheiro para livros ou para mais tarde comprar um fato de três peças. Fui criado no meio de livros e o meu avô acreditava que a cultura (bem como o conhecimento da astronomia, da filatelia ou dos princípios gerais da contabilidade) trazia alguma felicidade ou, pelo menos, assuntos para conversas com sujeito, predicado e complemento directo. O velho Doutor Homem, meu pai, educado pelos mestres da ironia, pelo cosmopolitismo da época e pela necessidade de alimentar uma família numerosa, não acreditava na felicidade nem como um direito nem como um ideal – limitava-se a coleccionar as coisas simples das cartas de leitores do ‘Telegraph’. Não vejo outra explicação.

in Domingo - Correio da Manhã - 30 Maio 2010

domingo, maio 23, 2010

Sobre o Leviatão que há em nós

A minha sobrinha queixa-se amargamente (suponho) de que estive três semanas a falar de contabilidade sem – nas suas palavras – eu dizer o que queria ter dito. O que ela supõe que eu gostaria de ter dito é o seguinte: sim, o dr. Salazar, com aquele seus princípios de contabilista de loja de fazenda, ou de auxiliar no almoxarifado de estalagem, tinha razão.

O almoço de domingo passado entreteve-nos nesta discussão. A pátria sofre ataques contabilísticos e parte da família (felizmente, não muito substancial) dedica-se a assuntos conexos. Cada um dá a sua opinião, e a soma é a seguinte: ou economizamos na manteiga ou teremos de a pedir emprestada ao vizinho. Aqui, o problema é duplo: por um lado, o vizinho desconfia de que não há solvência bastante para lhe devolvermos a manteiga; por outro, o vizinho economizou alguma, mas precisa dela para os gastos.

Discutir finanças com recurso a metáforas já é suficientemente mau; mas acrescentar-lhe uma parábola (a da manteiga, de gosto duvidoso) passa a assunto de costumes. Há quase vinte anos que não me dedico à ciência económica – um assunto que ficou arrumado , no Porto, no velho escritório da família, quando decidi retirar-me para os pinhais de Moledo convencido de que a pátria se tinha morigerado e que estávamos no caminho do progresso. Mesmo assim, os hábitos frugais dos Homem, longe da sovinice, recomendaram sempre economias, poupança, aforro – os Homem não confiam no Estado, nem para cobrar o imposto nem para gastá-lo depois.

O velho Doutor Homem, meu pai, tinha gostos moderados e gastos sem expressão. Habituado à contemplação, às sestas de fim de semana e os Verões supliciantes de Ponte de Lima, bastava-lhe considerar que a vida tinha um termo e que ele não estava talhado para decidir quando seria esse dia. Limitava-se a um pequeno-almoço de torradas com pão do dia anterior e à leitura de jornais; o café de cevada mantinha-o erguido durante toda a manhã – e considerava que “jantar fora” era um luxo fora de moda, bom para burgueses e homens sem família. Ele tinha razão no essencial; a ementa dos restaurantes era péssima e os perfumes da cozinha de casa ainda hoje são recordados com saudade. Habituados a poupar no acessório para dar satisfação ao essencial, duas gerações de portugueses remediados puseram as suas economias a salvo, na convicção de que esse sacrifício tinha sido feito por eles e não pelo Estado. Mudou tudo, entretanto. Não há nada na vida das pessoas sobre que o Estado não tenha opinião, desde alta economia até puericultura. E esse é o nosso principal problema.

in Domingo - Correio da Manhã - 23 Maio 2010

domingo, maio 16, 2010

As más evidências da contabilidade

Vivemos na época da contabilidade. O velho Doutor Homem, meu pai, era especialista em direito bancário e conhecia os seus meandros mais subtis; creio que por isso me encaminhou para a área “do Civil”, acreditando – suponho que erradamente – que o meu “temperamento” me iria indispor contra essa comunhão com o “deve” e o “haver”. Tirando um tio dos Arcos, que mencionava com agrado e certa imponência a “ciência do notariado” e mesmo a “beleza dos actos notariais”, ninguém mostrava demasiada deferência em relação às suas ocupações profissionais. Isso devia-se, estou em crer, a uma certa independência de espírito, bem como à noção de que o mundo, se não acabava nas últimas videiras de Caminha ou nos cúmulos de Santa Tecla, também não podia encerrar-se nas paredes de um escritório, por muito confortável que fosse.

Já o meu avô paterno, administrador de quintas do Douro e conselheiro de alguns exportadores ingleses de vinho do Porto (a quem teve de ler e recomendar ingestões regulares de Camilo Castelo Branco, para lhes mostrar a natureza dos nossos fígados), privava com a contabilidade e era íntimo das operações essenciais e acessórias dessa ciência que os seus filhos, modernos para a época e educados como varões cosmopolitas, desprezaram com método e desprendimento.

Abrir as páginas dos jornais, hoje em dia (mesmo para um velho de Moledo que foi contemporâneo da revolução da penicilina e assistiu às primeiras polémicas sobre os fatos de banho femininos nas praias do Minho), é um exercício penoso que requer conhecimentos contabilísticos e operações com percentagens e várias casas decimais. A isso se dedicam os políticos hoje em dia, coisa que devia indignar tanto Disraeli como o velho Doutor Homem, meu pai. A posteridade recorda a máxima defendida pelo dr. Salazar, que vivia agarrado ao Almanaque Bertrand, muito útil às donas de casa: não gastar mais do que se aforra. Este princípio era válido para a economia de então, em que se faziam coisas, se produziam coisas, se vendiam coisas – e se conhecia o preço de tudo isso.

Como princípio, é elementar. A independência das famílias dependia dele. Os Estados arrastam, no entanto, uma clientela difícil de satisfazer e a quem os políticos prometeram o direito à felicidade e ao ‘superávit’. Era provinciano, senil e pobre – até como princípio. Mas, infelizmente, ainda não se inventou melhor forma de praticar a ciência da contabilidade. As coisas são como são, explico eu à minha sobrinha Maria Luísa que, na véspera de cumprir 40 anos, ainda não cedeu às evidências.

in Domingo - Correio da Manhã - 16 Maio 2010

domingo, maio 09, 2010

Sobre o bulício das velhas estradas

Recordo, com alguma melancolia – Maio é o mês em que as mimosas começam a despontar –, as velhas estradas do Minho: estreitas, curvilíneas, de empedrado, com rectas excepcionais, passando por florestas de pinheiros e servindo de observatório do litoral. Era antes da democracia, da indústria automóvel e do aumento do preço da gasolina. Com essas instituições, o carro passou a ser um bem tão indispensável como, outrora, o relógio que todo o noivo devia enfiar no bolso do colete. O bulício dos pinhais, para recordar um dos poemas mais mortíferos da nossa Língua, foi substituído pelo ruído dos automóveis a passar na estrada, lá em cima. Depois, pelo das máquinas que abriam mais estradas paralelas. Não menciono, já, os caminhos perdidos nas serras, por onde chegávamos aos Arcos de Valdevez e ao Lindoso, ou por onde subíamos e descíamos até conseguir chegar ao velho pontão carcomido pela água da lagoa de S. Pedro de Arcos. Era aí que ficava, bem perto, o refúgio onde se albergara o Tio Alberto, bibliófilo emérito, gastrónomo, jurista, aventureiro e autodidacta.

Ele repousa hoje no velho cemitério – decorado por um fila de invejáveis ciprestes, em cuja base cresceram trepadeira de rosas de Santa Teresinha – onde vários Homem enfrentaram a escuridão da eternidade. Nenhum deles conheceu a avidez de hoje pelas auto-estradas – viveram antes da democracia e da televisão a cores, tomaram o seu lugar em comboios onde o pó assentou e a ferrugem acabou por devorar os varandins, ignoraram a Alta Velocidade (a Tia Benedita continuaria a ignorá-la se vivesse hoje), nunca conheceram vertigem maior do que as trovoadas que assolaram os telhados do velho casarão de Ponte de Lima onde uma invejável cópia do retrato do senhor Dom Miguel sobrevive como uma assinatura de família, mostrando a que século pertencemos e a que fuligem do nosso atraso seremos devolvidos pela História, cruel, vitoriosa e implacável.

O único campeão das estradas do Minho dessa época foi, evidentemente, o Tio Alberto. Em 1967 compareceu em Ponte de Lima na companhia de um Alfa Romeo Giulietta Spider – um “vero Osso di Seppia”, como então dizia a bela sociedade de Milão – que foi considerado um atrevimento na época e um desafio ontológico à nossa modéstia congénita. Guiei-o várias vezes e senti-me, na época, um actor de cinema. Imaginei-me ao lado de uma jovem brasileira e sardenta com quem outrora passeei na ainda mais jovem Copacabana dos anos cinquenta. Mas isso é outra história que não tem a ver com o bulício das nossas estradas.

in Domingo - Correio da Manhã - 9 Abril 2010

domingo, maio 02, 2010

Algumas observações sobre contabilidade

O velho Doutor Homem, meu pai, como muitas pessoas da geração, tratou de várias falências. Especializado em direito bancário, parte do seu trabalho era dedicado a acompanhar as minudências da vida de empresas e de uma ou outra fortuna; de qualquer modo, não estava imunizado contra a vetusta inclinação para o escândalo própria das cidades burguesas do século XIX. Tirando o vintismo revolucionário, que ele achava uma extravagância própria da época, o velho causídico nunca deixou de ser um homem do Porto burguês e confortável, bem alimentado e com uma natural tendência para a ironia e o individualismo.

De modo que as falências eram atribuídas ao que hoje se chama “má gestão” ou a desvarios de mau proprietário – que iam do mau uso do dinheiro até à quebra de compromissos bancários, passando pela prática do adultério (que, aos poucos, esgotava as bolsas mais recheadas) ou pela tendência para gastos estapafúrdios numa cidade habituada à morigeração e à parcimónia. Um dos meus sobrinhos, que dedica o seu tempo e inteligência aos mistérios da economia (uma ciência que o tempo aproximou, cada vez mais, da cartomancia e da astrologia divinatória), não compreende esta teoria e atribui-lhe a origem do “provincianismo português” em matéria de negócios; como já ouvi falar de “falências criativas” e de uma prática alquímica designada por “engenharia financeira”, suponho que há um fundo de verdade nisso, mas duvido muito: o género humano habituou-se a um certo número de vícios relacionados com o dinheiro, e não é provável que tenha mudado tanto nos últimos cem anos.

Se bem que várias vezes tivesse considerado o dr. Salazar como um produto deteriorado do conservadorismo português, o velho Doutor Homem, meu pai, achava duas coisas suplementares: a primeira, que não existia conservadorismo português (ele acreditava que só havia conservadores em Inglaterra); a segunda, que esse conservadorismo, para não ir mais longe, era o resultado da ignorância sobre como o mundo funcionava para Leste de Vilar Formoso e Norte de Valença – e uma degenerescência do analfabetismo religioso. Falo do dr. Salazar porque ele tinha uma visão simples e fácil do modo como se evitavam as falências, resumida no seu modo de dirigir o país: mão de ferro e contabilidade de instrução primária. Hoje, já ninguém se contenta com isso e fala-se da falência da pátria como de uma inevitabilidade. O velho Doutor Homem, meu pai, desprezava o dr. Salazar mas achava que o seu espírito de contabilista tinha alguma razão de ser e que não se devia gastar mais do que se ganha.

in Domingo - Correio da Manhã - 2 Maio 2010