domingo, dezembro 20, 2009

A ortografia pátria e os poliglotas da casa (1)

Fala-se do Acordo Ortográfico como se fosse uma grande revolução na orbe dos planetas. A expressão deve-se a Copérnico, que escreveu o ‘De Revolutionibus Orbium Coelestium’ e que não tem a ver com o assunto, mas que eu invoco por causa do Latim, a língua que todos tínhamos de aprender para sermos alguma coisa — sobretudo no inexpugnável mundo do Direito, onde a sua utilidade se limitava aos exemplos de costumes e, raramente, ao da necessidade das leis.

A ortografia portuguesa é um corpo abandonado de leis a quem o latim não empresta, hoje, grandiosidade alguma pela simples razão de que já ninguém o estuda. O Tio Alberto, que foi latinista, sabia também grego e farsi, teve rudimentos de hebraico eclesiástico e manejava o francês, o inglês, o italiano e um nadinha de alemão – para além das suas línguas de sempre, o espanhol e o galego clássico e erudito, que lhe permitia compreender tanto as clepsidras metafísicas e musicais das obras de Ramon Otero Pedrayo, Ramón Cabanillas ou Álvaro Cunqueiro, como as circunvoluções gastronómicas de José Mª Puga y Parga, o grande especialista em bacalhau guisado e ostras das rias. Mas ele era um Sábio, uma excepção na parte montanhosa do reino do Minho, vigiando o mundo em São Pedro de Arcos, Paredes de Coura.

O latim e o grego serviram-lhe para impressionar alguns juízes destas comarcas mais isoladas, terminando de cumprir a sua função com algum Ovídio citado nas mudanças de estação. O farsi, aprendeu-o nas margens do Cáspio ou às escondidas, em lições particulares parisienses ou genebrinas – para que o seu grande amor não crescesse entre idiomas modernos e conservasse alguma da pureza das velhas línguas da humanidade (o leitor recordará o seu namoro com uma princesa russa que, afinal, era persa). As outras línguas, tirando o inglês – que era obrigatório na família muito antes da partida de D. João VI e da corte para o Brasil, e que servia para ler os periódicos conservadores chegados de Londres –, foram sendo aprendidas por necessidade. De modo que o Acordo Ortográfico não seria objecto de confusão nesta casta de poliglotas indisciplinados que até há pouco tempo apenas conhecia a tinta permanente e as folhas pautadas de almaço. Que o Acordo decrete uma grafia ou outra, o caso é que só se lhe dá crédito nas conservatórias. A Tia Benedita, a matriarca dos Homem, herdeira de um suposto (mas inexistente) ramo ultramontano da família, escrevia “à antiga”, ou seja, como antes da primeira aula de ortografia do dr. Afonso Costa, para que não houvesse contaminação.

in Domingo - Correio da Manhã - 20 Dezembro 2009

domingo, dezembro 13, 2009

O monóculo vaidoso e o mar da eternidade

Foi um pouco depois de chegar o submarino ‘Albacora’, no estertor dos anos sessenta que o velho Doutor Homem, meu pai, decretou o fim do regime. Desde essa tarde de domingo, tingida pelo nevoeiro da Foz, até ao 25 de Abril de 1974, passou muito tempo. Não foi por isso que, nessa manhã de há 35 anos, o velho causídico se esqueceu do sobretudo que o protegia das derradeiras brisas de Abril – o fim do regime não teve nada a ver com a meteorologia –, mas porque saiu apressado a fim de comprar os jornais. Manter as rotinas, celebrar o costume, evitar as mudanças bruscas: eis uma divisa de serenidade que o velho conservador (tão conservador na política como liberal na vida inteira) prezou até ao fim. Por isso, ao chegar ao fim da rua, a caminho da tabacaria de A Brasileira, retrocedeu e subiu os dois degraus até ao bengaleiro de casa, de onde recolheu o sobretudo. Foi assim, vestido e agasalhado, que o velho Doutor Homem, meu pai, enfrentou a manhã, a neblina da Foz (a mesma de sempre) e a revolução.

Distante do salazarismo, sempre agiu como se vivesse na Inglaterra (ele tinha o hábito de fazer citações incómodas de Disraeli, o que não o impediu de coleccionar biografias de Gladstone, o rival do autor de ‘Vivien Grey’, de que possuía um exemplar da terceira edição), entre ‘tories’ que tinham conhecido Churchill e editoriais fundibulários do ‘Telegraph’. Tratava-se de uma desadequação profunda: Portugal era um país conservador sem verdadeiros conservadores, e nunca seria um país liberal porque não podia ter o luxo de admitir liberais. A Pátria viveria, mais uma vez, à procura de “líderes fortes” que metessem na ordem “a populaça” e administrassem o melhor possível os dinheiros dos impostos – coisa tão admissível como qualquer outra. Foi, pelo menos, o que mencionou ao fim da noite, ao comunicar à família que o monóculo do general Spínola era um mau augúrio, porque um homem que andava de pingalim nas savanas da Guiné e não tinha problemas oftalmológicos só podia apresentar-se assim por uma vaidade fora de moda.

O tempo deu-lhe razão, apesar de ter sobrevivido – à justa – ao mandato do general Spínola e à chegada do Inverno de 1974. Morreu em pleno mês de Dezembro, céptico e feliz, cinco anos depois de Dona Ester, minha mãe, a quem se juntou na eternidade para continuar os passeios crepusculares à beira do mar, supondo que existe mar depois desta vida. Se não existisse ele tê-lo-á imaginado, porque não era homem de se ficar.

in Domingo - Correio da Manhã - 13 Dezembro 2009

domingo, dezembro 06, 2009

Metáforas de Outono e do mar de Moledo

Uma das minhas irmãs – ambas muito mais novas do que eu, coisa que atribuem a estágios esporádicos no hemisfério Sul e à frequência de ‘spas’ onde cuidam da vinda da eternidade – anda a ler um livro sobre a felicidade. Trata-se, esclarece-me, de auto-ajuda, um género que a minha livraria de Braga expõe com razoável pertinácia.

Na minha biblioteca, os livros não versam a felicidade, que é um tema muito recente e uma descoberta útil para a literatura feminina dos últimos cem anos. Os grandes livros são, justamente, sobre a infelicidade – da poesia de Shakespeare aos romances russos, passando pelos folhetins que amoleceram a sensibilidade das burguesias do século passado, os finais felizes eram antecedidos de larguíssimos períodos de sofrimento. Chorava-se bastante, nesse tempo – e a felicidade não era uma mercadoria literária. Não há lágrimas tão fatais como nesses livros. Mesmo as lágrimas da vida real eram cópias apenas satisfatórias das lágrimas dos romances, onde podiam verter-se à vontade e sem risco para a imaginação dos leitores.Com esta idade, tendo já dobrado os 85, toda a literatura é de auto-ajuda. O seu conforto é amável e propicia momentos de sonho e de devaneio. Diante da proximidade da morte ou da doença que os atinge, e aos que nos são próximos, os livros são uma espécie de recurso barato, com larga aceitação por todas as farmacopeias do espírito. Servem-nos bastante, os livros. Aceitam-nos como somos. Deixam-nos sós quando precisamos.

A minha sobrinha Maria Luísa, que arrumou o seu segundo divórcio na prateleira das recordações, encontra muita semelhanças entre a sua vida amorosa e a de todas as grandes histórias de amor, sem se envaidecer. A vaidade amorosa é um dos piores defeitos do género humano, precisamente porque entre a senhora Condessa de Gouvarinho e Madame Bovary ou a inocente Julie d’Aiglemont (de ‘A Mulher de Trinta Anos’, de Balzac) é o amor que trai e fere – nada de que nos possamos envaidecer. Maria Luísa acha que a felicidade, hoje, é apenas um padrão invisível para alumiar as almas que já não alimentam nenhuma ilusão. O arrebatamento da balzaquiana Julie, nos braços de Charles de Vandenesse, é o festejo de uma ilusão perdida, a da felicidade.

Quando vejo a minha irmã entretida a folhear o seu livro “sobre a felicidade”, retenho-a como um retrato junto da folhagem perdida dos hibiscos da próxima estação. Sinto uma aragem de leveza que exala ternura nesse retrato. Confunde-se com a brisa dos pinhais de Outono. Moledo serve para iluminar todas as metáforas.

in Domingo - Correio da Manhã - 6 Dezembro 2009