domingo, março 29, 2009

A vida dos comboios (1)

Nos anos sessenta mal via despontar o leve torpor da Primavera, o Tio Alberto viajava. A sua condição de bibliófilo de S. Pedro dos Arcos, aventureiro, botânico, jurista e gastrónomo, deixava-lhe tempo para esses interlúdios na pacatez da sua existência conhecida. Eram viagens longas na maior parte das vezes, com fundo romântico quase sempre, destinadas a coroar – como recompensa – a sua vida de celibatário e hedonista. Recomposto e tocado pela incandescência do cosmopolitismo, ele regressava a S. Pedro dos Arcos e às suas plantas, às estantes arrumadas, aos pareceres e trabalhos do escritório, aos grandes passeios em redor da lagoa de Bertiandos, às caminhadas de Moledo (foi ele que me convenceu, em tempos, a retirar-me para Moledo em vez de ficar, civilizado, a tratar das coronárias no Porto). Para trás deixava um mundo que não era apenas cosmopolita, cheio de cidades reais e de encontros suaves e doces – era também movimentado e feito de linhas de comboio. Ele viajou no Expresso do Oriente e no Transsiberiano, percorreu as linhas que atravessavam as montanhas da Europa quando a Europa tinha montanhas, acompanhou o destino dos que viajavam de Lisboa para Paris no Sud Express ronceiro, sujo e recordista de atrasos.

Teve sorte. Foi um privilegiado, certamente. Onde outros chegavam a Paris pela amarga via da emigração e da pobreza, procurando sustento e desejando uma fortuna que os libertasse da miséria, o Tio Alberto descia em Austerlitz para visitar aquele mundo que nunca chegaria a Portugal. Nunca perdoou ao dr. Salazar essa amargura e irritava-se bastante com os portugueses, que o mereciam.

Seja como for, essas viagens de comboio eram longamente preparadas e necessitavam de entrevistas prévias numa agência de viagens. De Lisboa para Paris. Do Porto para Lisboa e para Madrid – e uma viagem para Barcelona antes de seguir para Paris, de onde, certa vez – em busca de um amor que durou mais do que a sua vida – tomou a direcção do Cáspio por caminhos até hoje ignorados pela família. Na monumental herança de papéis que me coube recolher da sua casa de S. Pedro dos Arcos, depois da sua morte, encontrei esses registos de bilhetes ferroviários, carimbos de fronteiras e de estações onde, de noite, se esperava uma ligação rara e descuidada.
Esse mundo terminou. Os comboios que atravessavam a Pátria e os que riscavam – como um cometa – o mapa da Europa são hoje recordações vagas para os meus sobrinhos. Eles discutem o baixo preço dos bilhetes de avião. Ignoram como o mundo foi sendo construído.

in Domingo - Correio da Manhã - 29 Março 2009

domingo, março 22, 2009

O clamor do Verão minhoto

A Tia Benedita, matriarca da família e responsável pela sua sobrevivência no interior do redil do velho miguelismo minhoto, achava que o Verão trazia consigo a devassidão e a pouca-vergonha. Já o disse de outras vezes e com palavras diferentes – mas ela não conhecia a Primavera.

Ela amava o Verão, as romarias, as procissões, as bandas de música, os foguetes de arraial e as missas campais. Era um resto do seu Minho que ali se organizava para prometer às novas gerações que alguma coisa permanecia intocável. Simplesmente, a Tia Benedita tinha o género humano em muito má conta e atribuía-lhe uma interminável série de pecados e de formas de sucumbir às tentações do reino animal, através da exiguidade das roupas, das sandálias abertas, dos cabelos soltos, dos banhos do rio – e do sexo extramuros, ou seja, do pecado propriamente dito.

O velho Doutor Homem, meu pai, deixava que ela mantivesse um módico de indignação. Ele achava (com toda a razão) que o seu génio se manteria activo muito mais tempo se tivesse oportunidade de protestar contra o mau andamento das coisas do Mundo; a contrariedade, em certos espíritos, é um bálsamo para o corpo e, por extensão, funciona como um alimento para o que na minha juventude se designava por 'alma'.

Mas ela, pobre Tia, não conhecia a Primavera. O Tio Alberto, o bibliómano de São Pedro dos Arcos, pelo contrário, era íntimo – e mal começavam a aparecer, por detrás das montanhas de Paredes de Coura e dos Arcos, aqueles tons alaranjados dos crepúsculos que anunciavam calores precoces, sentava-se diante dos planisférios, imaginando viagens solitárias em que se perderia no meio de aventuras que não confessaria à Senhora, alcantilada em Ponte de Lima para agora se defender da imoralidade, como antes se protegia de Afonso Costa e da Carbonária, dos republicanos, do bolchevismo – dos mesmíssimos muros de onde as clavinas soaram, antigamente, para afastar as milícias liberais que vinham de Viana, entusiasmadas com a campanha de Charles John Napier, o general inglês que tinha entretanto adoptado o ridículo pseudónimo de Carlos de Ponza, com ressonâncias espanholas e valdevinas.

O Tio Alberto suspirava e suspirava – até acabar por partir, de Campanhã, para regressar dois meses depois, cumprida a sua tarefa civilizadora. Ao regressar perguntava, à entrada dos portões de Ponte de Lima, como se o velho casarão lhe lembrasse a inclemência do clima: 'E então o Verão?' A Tia Benedita limitava-se a responder, conformada: 'Estão aí as vindimas.'

in Domingo - Correio da Manhã - 22 Março 2009

domingo, março 15, 2009

A história de uma traição

O meu avô, que viveu como administrador de quintas do Douro, recolhendo deves e haveres relacionados com vindimas, azeite, amêndoa, pomares e hortas cultivadas à beira do rio. Ele conheceu de perto as consequências da filoxera, uma velharia nos nossos anais de agronomia, e o termo passou para os dicionários de família, geralmente muito conservadora no léxico. “Deu-lhe a filoxera” foi uma expressão muito posterior, rescendendo à tragédia que levou o meu avô a ficar impressionado com a energia de D. Antónia Ferreira, a Ferreirinha.

O comboio do Douro (acompanhei o meu avô apenas duas vezes nessas visitas periódicas) parava na Quinta do Vezúvio (uma das glórias da Ferreirinha) para o deixar, contemplativo, a mirar a margem defronte. O Sr. Hermenegildo, que o perseguia com as suas pastas de contabilidade onde os lucros nunca eram exagerados (sobretudo os proprietários ingleses temiam o optimismo como uma doença mental), julgava que o meu avô sofria de uma paixão comum entre os homens que tinham privado com a senhora – não, ele sabia estabelecer uma distinção entre a beleza feminina e a biografia romanceada de uma mulher do Douro. Simplesmente, nesse mundo em que ainda não havia ‘ié-ié’ mas apareciam notícias sobre o ‘charleston’ (estávamos nos anos quarenta, no fim da guerra), a Ferreirinha era um exemplo. O meu avô coleccionou episódios sobre a personagem e contava-os à mesa para pintar o Douro com as cores do heroísmo. Um dos seus (e nossos) antepassados tinha andado em bolandas com os liberais nos vales e penhascos de Foz Côa e Freixo de Numão – e acabara derrotado. Diante dessas lendas de traição e dedicação, o nome da Ferreirinha era um bálsamo para provar a maldade do Duque de Saldanha e do cartismo.

A minha interpretação é mais romanesca e romanceada, atribuível a muitos anos de más leituras e à melancolia da idade – e limita-se a considerar que quase todos os homens amam as mulheres que os traem. A única vantagem é que o meu avô não conheceu a senhora, limitando-se a elegê-la como figura de uma novela regional, cheia de música de câmara e de perfumes de giesta. O velho Doutor Homem, meu pai, considerava o tema como assunto de família – ele temia que o seu pai, inebriado pela figura de Guerra Junqueiro (com quem privara e a quem visitava), acabasse a recitar ‘O Melro’ com arrebatamento apaixonado. A sua dedicação amorosa à Ferreirinha sempre o distrairia dos caminhos do abismo. Uma família reaccioária sabe escolher os seus adversários.

domingo, março 08, 2009

A melancolia, uma doença

A mais nova das minhas irmãs (somos cinco) acha que eu me recusei a dobrar o século. Ela tem a impressão de que eu pertenço, não a este mundo, mas aos calendários que vão passando de moda. Gosto da imagem e não me ofendo; cada dia que acrescento à minha idade é um dia para agradecer à providência (exagero: eu conto os meses, um a um). Reunidos à minha volta, os meus sobrinhos recordam-me a evidência de que o meu tempo é um empréstimo; eles são jovens, estendem-se na varanda, prometem vir passar o próximo Verão, corrigem-me a ortografia, fazem barulho, trazem filhos que arrancam as folhas dos hibiscos. Agradeço tudo como um suplemento de vida.

A Doutora Filomena Mónica, que acrescentou a vaidade aos meus pecados, e que teve a bondade de me prefaciar um livro, achava-me um velho fidalgo de província – compreendeu depois que se tratava apenas de um velho. Sentado diante dos pinheiros, que me mostram a Primavera muito ao longe, enumero as coisas que me fizeram ser como sou e não encontro nenhuma lógica, nenhum fio, nenhum sentido. Talvez uma recordação – tão infiel como um amor perdido – me empurre para mais um dia, mais um ano. Sobrevivo ao Inverno como uma presença de quem nada se espera, nem a própria presença.

A melancolia é uma doença tão rara como qualquer outra, como insistia o velho Doutor Homem, meu pai. Ele tinha lido o tratado de Robert Burn e conservava o livro (‘The Anatomy of Melancholy’) entre os seus preferidos, embora fosse de leitura fastidiosa e apenas o tivesse folheado ao abandonar a juventude, como uma poção protectora para os dias que estavam para vir. Ter filhos (fui eu o primeiro), manter uma família, alimentar de livros uma biblioteca (seu único luxo da idade adulta), cedo o distraíram para felicidade de todos. Ignoro como realizou os seus sonhos para lá das temporadas de Verão em Ponte de Lima, ouvindo os velhos discos de Anna Moffo – a soprano da família, recordada em discos que já não têm paradeiro – e sublinhando, a lápis, ‘O Minho Pittoresco’. Dona Ester, minha mãe, morreu primeiro e só então soubemos que regressara à “idade da melancolia”, voltado para dentro.

Ao dobrar os meus oitenta e oito anos limito-me a convocar a família para um almoço de maledicência (a nossa especialidade). Do alto do velho eremitério de Moledo, no coração do meu Minho, os meus antepassados vigiam-me como a um infeliz desocupado. A minha sobrinha Maria Luísa diz que sou tão conservador que consigo chegar a esta idade. Talvez seja isso.

in Domingo - Correio da Manhã - 8 Março 2009

domingo, março 01, 2009

A maluquice (2)

A ideia é que se fala abundantemente de sexo – isso acontece, diz a minha sobrinha, porque se fala demais do que não se tem e porque as mulheres ‘andam malucas’. Ignoro. A minha relação com o sexo é simpática e prometedora, uma vez que há longos anos que não nos encontramos. Não se trata de uma infelicidade; remetido para o velho eremitério de Moledo e afastado do casarão de Ponte de Lima, aceitando – por vontade própria e sem rezingar – ter a idade de um objecto arqueológico, apenas recordo o perfume das paixões de outros tempos: é um perfume de mimosas na estrada do Minho, o perfume das amoras nos caminhos das serras ou nos arredores das aldeias, ouvindo ao longe a passagem de uma banda de música perdida num adro. O sexo verdadeiro não tem muito a ver com o sexo verdadeiro; é todo feito de recordações, uma penumbra de devassidão e risco cai sobre a nossa vida vinda do passado, onde já nada se perde e onde só as boas coisas se encontram.



Julguei-me apaixonado várias vezes ao longo da vida; para infelicidade das minhas irmãs, que murmuravam qualquer coisa sobre eu “arrumar” o destino, nenhuma delas se prolongou num matrimónio que hoje sirva de consolo e de companhia.



Acompanham-me os livros. Acompanham-me os meus sobrinhos, que preferiam ver-me como um velho anarquista que tivesse passado o melhor tempo da sua juventude colocando bombas à porta de bancos, ou assaltando a tradição da família para que me declarasse democrata e republicano. Acompanham-me os meus contemporâneos que já partiram.



Desiludi uns e diverti outros. Expliquei aos meus sobrinhos que não, que nunca tive uma adolescência revolucionária e barbuda. Há cinquenta anos eu esperava da vida o que ainda hoje acho decente esperar-se: um perfume de mimosas numa estrada do Minho. Era um conservador e sou um conservador, um hibisco que muda de folha na altura certa e que aceita a dádiva da fortuna e da meteorologia. E mal me pronuncio sobre ‘o sexo’. O velho Doutor Homem, meu pai, que não era um moralista, dizia que nos devíamos poupar em doutrina sobre o impalpável porque as coisas são como são, tangíveis. Dão prazer uma vezes e, de outras, servem-nos a dor que já não magoa – que apenas se reconhece como o preço a pagar por tudo o resto. A única coisa que me espanta é o modo como as pessoas – hoje – desconhecem a palavra ‘satisfação’. A Tia Benedita achava que da dúvida se passava à maçonaria, e da maçonaria à devassidão e ao bolchevismo. Pobre senhora. Ela ignorava que a humanidade é capaz de inventar sempre tortura maior para si mesma.



in Domingo - Correio da Manhã - 1 de Março 2009