domingo, agosto 31, 2008

A Rússia move-se

A Tia Benedita não gostava da Rússia, evidentemente. Ela tinha assistido, no seu tempo – os Homem vêm da Antiguidade –, à queda dos czares e à vitória dos vermelhos. E o essencial era que os czares defendiam a Igreja, mesmo que fosse outra Igreja que ela não entendia, e o bolchevismo fazia parte do vastíssimo conjunto das obras de Satanás. Minudências de história política não a interessavam muito, e o gosto pelo detalhe, pelo pormenor, pelas variantes, eram coisas que não atrapalhavam a sua 'visão geral do mundo' – que era pessimista e que partia do princípio de que Ponte de Lima teria de continuar a ser guardiã da civilização. O resto eram consequências da concessão de Évora Monte, que culminaria na subida ao poder de Afonso Costa. O velho Doutor Homem, meu pai, tentou por diversas vezes chamá-la à razão, estabelecendo uma distinção fundamental entre a vitória dos 'liberais' nas guerras civis e a ascensão do demagogo republicano. Foi escusado porque a Tia Benedita achava que a imoralidade em geral, o ateísmo e as minissaias (ela não saberia pronunciar o nome de Mary Quant) eram também obra da República e da maçonaria. O meu pai desistiu e passou a limitou-se a achar-lhe graça, considerando-a uma espécie de monumento nacional, ao nível da abóboda do Mosteiro de Alcobaça ou das Cortes de Lamego, para o caso de terem existido.

Ou seja, os exércitos da Rússia, que esta semana estiveram nas primeiras páginas dos jornais invadindo a Geórgia, não constituiriam uma surpresa para a matriarca da família.

A mim, a Rússia lembra-me sobretudo o Tio Alberto, o bibliómano e gastrónomo de São Pedro de Arcos, celibatário como eu. Um dos seus amores – o derradeiro mas, provavelmente, o mais intenso e definitivo – foi a sua 'princesa russa'. Nesses anos sessenta ele atravessou a Europa várias vezes para se encontrar com Svetlana, cuja família vinha das margens Cáspio – que tinha abandonado depois da revolução. O velho jurisconsulto minhoto havia de morrer jovem, o que não constituiria uma contradição de termos; limitou-se a sobreviver dois anos à sua paixão, que repousa perto de Genebra, numa pequena aldeia das montanhas.

Na 'Brasileira de Prazins', os padres miguelistas também falavam da Rússia. Eram outros tempos – nessa altura, os czares intercediam pelo príncipe proscrito e um dos companheiros do senhor abade de S. Gens de Calvos limitou-se a observar: "A Rússia move-se, é o que é."

in Domingo - Correio da Manhã - 31 Agosto 2008

domingo, agosto 24, 2008

O direito a não casar (1)

A minha sobrinha Maria Luísa ficou chocada com um dos capítulos terminais do "Monte dos Vendavais", quando Heathcliff consuma a sua vingança e maltrata o filho de Hindley – ela acreditava que Mr. Heathcliff , por ser um personagem de Emily Brontë, devia ter sentimentos nobres ou, pelo menos, mostrá-los aos leitores. Expliquei que Tristram Shandy e o Lazarilho de Tormes só com dificuldade seriam convidados para a mesa de almoço dominical em Moledo – a menos que fosse para contar as suas histórias, que alegraram gerações de leitores egoístas (todos os grandes leitores são egoístas) mas que não seria bom elogiá-los enquanto modelos de virtudes.

Isto aconteceu por alturas do seu segundo divórcio (não sabia que tinha casado), e Maria Luísa não se comove hoje com a maldade da literatura – sabe que é uma coisa de papel. O pormenor é suficiente para que amemos Madame Bovary, o que não significa que as senhoras da família lhe sigam os passos (a minha sobrinha descobriu, tardiamente, que é "uma balzaquiana" e só depois leu "A Mulher de Trinta Anos").

Boas pessoas é o que há mais; mas não convém confiar. Maria Luísa, por exemplo, que tem muito mais experiência do que eu em matéria de casamentos e de divórcios – eu nunca casei –, reconhece que o casamento "é uma coisa fácil" hoje em dia. As minhas irmãs reprovam-me o cepticismo e atribuem o meu estado celibatário a uma substancial dose de preguiça que me perseguiu desde as primeiras e fatais desilusões amorosas; assim, mantendo-me "um solteirão de província" (é esta a expressão usada), nunca tive de conhecer os prazeres dos conflitos matrimoniais nem precisei de me iniciar nos mistérios da puericultura. Maria Luísa, que conhece mundo, limita-se a achar-me "um malandro dos antigos", imaginando-me vestido de "dandy" a recusar propostas de casamento feitas por damas da velha sociedade da Foz, há cinquenta anos, pelo menos. Para não a desiludir, não exprimi a minha opinião sobre o assunto – que se tratava apenas de preguiça e de conformismo. Mas contei-lhe os passos essenciais da biografia do Tio Alberto, também celibatário, e que tinha uma agenda de senhoras a visitar pelos cosmopolitas caminhos da Europa – até ao Cáspio, onde tinha nascido o derradeiro amor da sua vida. Ela não se convenceu. Ela não sabe que, na época, o chique era não casar.

in Domingo - Correio da Manhã - 24 Agosto 2008

domingo, agosto 17, 2008

O calendário das estações

Os veraneantes de Moledo queixam-se "da nortada" – referem-se a uma suavíssima brisa que empurra o aroma da resina até perto do areal, mostrando que os pinhais existem e que o olfacto é um bem a proteger. Esse vento (eu uso a expressão "suavíssima brisa" por pura ironia) não é o mistral do Mediterrâneo, tépido – pelo contrário, foi tocado pelas montanhas ligeiramente frias do Minho e da Galiza, e rende-se com harmonia às águas azuis-fortes do mar da minha terra.

Os veraneantes, no entanto, não gostam e não apreciam arroubos poéticos de um velho Matusalém conformista e conservador. Dizem-no com energia enquanto se afligem, comentando o aquecimento global. Têm tendências estranhamente autoritárias porque, se pudessem, decretavam a canícula entre a Apúlia e Cerveira só para confirmarem que tinha chegado o Verão e eles participavam naquele amplexo de suor, refrescos exagerados e sol inclemente. A natureza, no entanto, está do meu lado – não porque eu tenha razão, mas apenas porque lhe estou afeiçoado e o hábito de oitenta e oito anos me dá garantias de alguma regularidade. A minha sobrinha Maria Luísa, que arrasta os seus filhos para a praia a meio da manhã, a fim de os soltar no areal com a promessa da redenção solar, repete miraculosamente os gestos de Dona Ester, minha mãe, que achava o Verão uma manifestação da bondade dos elementos. Maria Luísa, no entanto, precisou de ser industriada; ela pensava, como a generalidade dos portugueses da sua idade, que o calendário das estações do ano andava alinhado com a precisão de um computador e que a meteorologia se definia nos manuais de geografia clássica. Moledo ensinou a todos que a natureza é um prodígio de contradições. Não há Verão de Moledo sem chuva; não há Verão de Moledo sem nortada nem manhãs enevoadas (a simpática referência à "neblina matinal" que ilustrava as previsões do Dr. Anthímio de Azevedo ainda antes de o Homem ter ido à Lua).

O velho Doutor Homem, que conheceu a Moledo de outros tempos, ainda mais friorenta e nos antípodas dos trópicos e das Caraíbas, recomendava às noras recém-chegadas à família "que levassem um casaquinho" na trouxa da praia. Elas pensavam que o velho causídico tinha problemas com a nudez. Não; ele era um velho sátiro entre os pinhais do Minho. Simplesmente, gostava que as pessoas se ambientassem.

in Domingo - Correio da Manhã - 17 Agosto 2008

domingo, agosto 10, 2008

Uma ocupação civilizadora

Isabelle, a namorada holandesa do meu sobrinho Pedro, acaba de chegar aos areais de Moledo – e prepara-se para enfrentar uma multidão preguiçosa e educada para a lassidão. Para o seu temperamento, moldado pela neblina da ilha de Ameland, há aqui um problema. A jovem bióloga, que veio da distante Frísia ou da ocupada Amesterdão (creio que vai à Frísia natal uma ou duas vezes por ano) para um intervalo no seu doutoramento acerca de uma espécie rara de algas – foge-me ao entendimento – tinha, a princípio, uma vaga esperança de obter ilustração nas colinas verdejantes do Minho, perguntando amiúde pelos museus, igrejas, ruínas românicas, bibliotecas e pontos de interesse vagamente etnológico. Ela vem de uma civilização que preza a ocupação do tempo e prega a sua utilidade. Foi assim que os holandeses chegaram ao Pernambuco e o civilizaram em poucos anos, enchendo a enlameada e pantanosa Recife do século XVII de museus, bibliotecas, pontes, jardins e até observatórios astronómicos, transportando para os trópicos hordas de cientistas e de curiosos. Os portugueses, depois da batalha dos montes Guararapes – expulsando definitivamente a casa de Orange com a ajuda dos escravos e de índios – depressa se apropriaram dessa mancha de civilização, esvaziando-a e pilhando-a com método e determinação. Até ao século XIX não consta que as bibliotecas do Recife se tenham multiplicado.

Portanto, como este é o seu segundo mês de Agosto nas areias de Moledo, já não se preocupa em introduzir um módico de "vida cultural" nas suas férias – logo ao primeiro ano compreendeu que a nossa originalidade (se bem que nem toda a originalidade seja premiável) vinha da preguiça endémica que povoa as nossas terras. "Verão é Verão", explicou-lhe Dona Elaine, a governanta de Moledo, com gestos apropriados, tentando fazer-lhe ver que estava rodeada de selvagens sem fé e sem brio. Isabelle tentou, ainda que moderadamente, saber se poderiam ir a Braga para visitar a biblioteca do Dr. Barreto Nunes (que eu tinha gabado com ditirambos, na varanda, depois de um jantar palavroso) – mas o meu sobrinho Pedro explicou-lhe que "havia muita gente". Ela sorriu, mostrando aquela luz de esperança no seu rosto de maçãs rosadas (o sol de Moledo, juntamente com o iodo, produzem milagres): "Muita gente na biblioteca, em Agosto?" "Não, muita gente em Braga." Ela quis saber o que fazia tanta gente em Braga, no meio da rua. "Nada", respondeu o meu sobrinho.

in Domingo - Correio da Manhã - 10 Agosto 2008

domingo, agosto 03, 2008

Homenagem à Tia Benedita

A Tia Benedita tinha com o Verão uma relação controversa que, no fundo, era uma espécie de mal-entendido. Ela julgava que o Verão propiciava uma tendência para a amoralidade – não estava longe da verdade, se bem que a amoralidade não fosse inteiramente reprovável por uma ou duas semanas de pousio.

Habituados a ouvir histórias em que várias gerações da família se dedicavam a escandalizar os ouvidos da Tia Benedita, não custava perceber que ela fingia o suficiente para não se sentir desacreditada. Ao senhor Dom Miguel, por exemplo, desculpava as fragilidades da adolescência – que atribuía às más companhias –, e justificava os rapazes da família com a influência dos "desconchavos dos dias de hoje". Ela ainda não conhecia o papel das hormonas e certamente acharia que o Dr. Freud era um agente do bolchevismo internacional em alegre compadrio com Afonso Costa e a Carbonária. Ora, todos nós cultivámos esta imagem porque nos convinha a existência de uma personagem familiar do tempo de D. Sancho II, o Pio – mas a Tia Benedita não perseguia a imoralidade com o imaginário látego do ultramontanismo; pelo contrário, ela apreciava, sem desdém (e até com um pouco de ironia), a tendência natural para o abismo e para o pecado; simplesmente, achava que o segredo e uma certa hipocrisia eram necessários para que "a sociedade" não se parecesse com o despautério dos bailaricos de um arraial. Esta necessidade de ordem incomodou-a até ao fim dos seus dias, sem que percebesse que entre o género humano e a necessidade de pecar havia um compadrio desesperado.

O Verão, com os seus decotes, barras das saias subidas, correrias até às clareiras das florestas, banhos nas curvas dos rios, suores fatais em rostos trigueiros e minhotos – eram uma ameaça pública a essa ordem imaginária, que ela tinha decidido defender como uma questão pessoal.

No fundo, tal como acontece frequentemente com os utopistas modernos da nossa esquerda, ela era uma esteta. Não apenas se julgava a viver na época errada como, de facto, vivia na época errada. E isso fazia da Tia Benedita uma personagem de romance de costumes, irrepreensível nos seus vestidos de domingo, observadora e excessivamente irónica, de quem quase todos nós aprendemos o cepticismo e o pessimismo se bem que por motivos diferentes. O velho Doutor Homem, meu pai, gabava-lhe a coragem extrema de não ter abdicado do seu tempo, mesmo vivendo noutro, inteiramente diferente.

in Domingo - Correio da Manhã - 3 Agosto 2008