domingo, julho 27, 2008

Há 89 anos

Nessa altura, a Espanha era um continente. A frase é excessiva mas serve para dar conta do deslumbramento familiar sempre que se ultrapassava a muralha invisível de Fuentes de Oñoro ou de Tuy para entrar no grande desconhecido – e o grande desconhecido eram aquelas paisagens diabólicas a que se tinha acesso depois de preencher os papéis diante de guardas civis de tricórnio, soturnos e bigodudos. O velho Doutor Homem, meu pai, que durante anos visitou o Dr. Cunha Leal no seu exílio da Corunha (facto a que a Tia Benedita atribuía razões ocultas – como comer ostras e visitar mulheres), lembrava-se sempre de El Ferrol, aliás El Ferrol del Caudillo, para associar à cidade a genealogia política do Generalíssimo. Ele não gostava do Generalíssimo como não gostava do dr. Salazar, o que se várias vezes se apresentou ser um problema para a família que, impedida de apreciar os ditadores ibéricos, se encontrava a braços com o trabalho infernal de não pactuar com o bolchevismo ou com a devassidão – para a Tia Benedita era o mesmo.

Mas a travessia da fronteira servia para que o meu pai respirasse. Dona Ester, minha mãe, que era pouco ou nada sorumbática, gostava desse risco invisível traçado na paisagem, dividindo os pastos verdejantes do Minho, bordejados a videiras que trepavam pelas encostas, da solidão melancólica da Galiza. Ela conhecia as histórias dos valdevinos da família – uma casta irresponsável e divertida, que conhecia os restaurantes do Lugo e de Salamanca, da Corunha e de Pontevedra, bem como as estradas que levavam ao “outro lado”.

O “outro lado” era a Europa, que só começava nas planícies de Bordéus. Entre Irún e Bordéus havia um interstício romântico e familiar, onde o velho Doutor Homem, meu pai, ainda solteiro, lhe ofereceu o primeiro ramo de flores – numa varanda de certo hotel de Biarritz onde a burguesia do Porto (pelo menos a burguesia que tinha leituras, sabia francês e apreciava a solidão, que era um traço de distinção), que na época era ligeiramente aristocrata, passava uma semana de cosmopolitismo antes de ir a Paris.

Naquele tempo, o meu pai vestia fatos de Verão e a minha mãe descia as escadas de madeira do hotel – que iam até uma praia de águas geladas e escuras – sem saberem que oitenta anos depois esse momento podia ser recordado. Podia. Fez esta semana oitenta e nove anos.

in Domingo – Correio da Manhã - 27 Julho 2008

domingo, julho 20, 2008

As saudades, em Moledo

Mesmo sendo – durante grande parte da sua adolescência e por alguns anos da sua idade madura – um 'dandy', o velho doutor Homem, meu pai, não deixava passar um Verão sem cumprir aquilo que ele chamava, por desfastio, a sua "via-sacra do costume". Era ironia, evidentemente; como nunca teve vocação para o sofrimento voluntário limitava-se a ironizar enquanto reunia uma pequena reserva de livros e alguns discos escolhidos (nunca esquecendo Anna Moffo, a sua soprano de eleição) destinados a Ponte de Lima.

Passados mais de cinquenta ou sessenta anos recordo – a esta distância, a que me separa da minha adolescência – aqueles gestos providenciais com que a minha vida ficou marcada: o de escolher o lado da varanda onde o sol bateria mais tarde, o de aguardar que um resto de poeira assentasse sobre as lajes do pátio, junto dos canteiros.

Verifico que, a esta distância, esse mundo se aproximava da perfeição. Isso acontece frequentemente com o passado, que brilha como um raio de luz na escuridão do tempo.

Satisfaço-me com o facto de esse mundo ter existido. Na minha memória, esses momentos são doces e saudosos, mas sei que não regressam. O mundo não só mudou, como diria qualquer conversador, como também perdeu qualidades. A minha sobrinha Maria Luísa achou, por instantes (antes de recuperar a manha da política e a sensatez geral), que a felicidade estava mais perto da terra nesse tempo, antes da democracia, da televisão a cores e dos romances escritos em conflito com a gramática. Expliquei que havia coisas boas e coisas más, e que o mundo favorece com apetite e entusiasmo aquilo que é mau. Isto vai contra as ideias da esquerdista da família, porque – a seu ver – a humanidade seria "naturalmente boa", não fosse "a sociedade". Ora, eu "a sociedade" não conheço. Vivo entre caminhos que vão dar ao consultório do meu médico de Viana, ao passeio junto da praia (diante da Ínsua, onde Moledo é mais melancólico ao fim da tarde) ou à loja de jornais onde me abasteço de vício e maledicência. Comparado com esta misantropia, só a tortura ultramontana da Tia Benedita, que via o espírito de Afonso Costa pairar sobre a Pátria, para esmagar as igrejas e matar à fome o Príncipe proscrito. Tentei várias vezes convencê-la de que o senhor Dom Miguel tinha morrido na Alemanha, junto da Princesa Adelaide, muito antes da República. Ela não acreditava. Também tenho saudades dela.

in Domingo - Correio da Manhã - 20 Julho 2008

domingo, julho 13, 2008

A doença do Verão

A minha principal doença do Verão é a da memória. O eremitério de Moledo reencontra periodicamente a sua função social, que é a de receber vagas de hóspedes ruidosos que bivacam pela casa fora, amontoando jornais, roupa, telemóveis e sapatos. Sou mais tolerante em relação a estas coisas durante os meses de Verão – como se a desordem que atinge Moledo me trouxesse um halo de oxigénio que purifica os estigmas da idade.

O leitor sabe – já o informei a tempo – que não sou dado a melancolias outonais e que me desagradam os excessos e arroubos daquela poesia portuguesa, melancólica e fúnebre, sobre as folhas que caem e as ruínas do tempo. O velho doutor Homem, meu pai, considerava que o exemplo mais fatal para o vício poético português era considerar-se o 'génio' – para si inexistente – do poeta de "Folhas Caídas". É certo que ele prolongava o ressentimento da família para com a geração de Almeida Garrett (a quem ele tratava por Leitão da Silva, seu verdadeiro nome), mas tinha alguma razão de ser.

A minha verdadeira melancolia é a de Verão. Mesmo nesses anos em que não havia praia (e apenas 'época balnear'), nos anos trinta e quarenta, Dona Ester, minha mãe, achava que devíamos bronzear-nos como pequenos selvagens do Mediterrâneo, como se a palidez do próprio país a incomodasse. Ela depositava-nos no areal e vigiava o mar. Era o seu momento, digamos, contemplativo.

Verão a Verão, ao longo dos anos, tenho seguido a ordem de Dona Ester – e justifico com 'a necessidade do iodo' (esse raríssimo elemento químico, flutuante e regional) as minhas caminhadas até à praia, onde leio os jornais e observo a chegada dos sobreviventes que, ano após ano, regressam às águas frias do Minho. Habituados a essa inclemência – e às 'neblinas matinais', a grande metáfora literária da meteorologia minhota –, os meus sobrinhos e os seus filhos juntam-se à tradição familiar e ocupam o toldo alugado à época. Esse ritual é um elemento fundamental para a conservação da espécie. Olhando para esse retrato de grupo, uma melodia nostálgica e tranquilizadora vem ter comigo a essas horas de preguiça, obrigando-me a recordar o tempo em que a vida não tinha fim à vista. E, embalado pela recordação, chego a pensar que todos fomos felizes, algum dia, alguma vez.

in Domingo - Correio da Manhã - 13 Julho 2008

domingo, julho 06, 2008

As energias do espírito

Dona Ester, minha mãe, tinha uma aversão especial por bruxarias, ao contrário do velho Doutor Homem, meu pai, que apreciava histórias de fantasmas e de aparições – ele lera os clássicos da literatura fantástica inglesa, onde havia uma certa promiscuidade entre espiritismo, magia negra, superstição simples e histórias bem contadas. A tudo isso ele acrescentou a ironia, para desvalorizar o tema e irritar a família. Já Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, gosta de recordar casos ocorridos aqui e ali, aparições iminentes de antepassados (sobretudo junto dos cruzeiros de granito das aldeias de Cerveira) e até premonições sobre desgraças futuras, especialização que ela atribui a uma velha tia de Freixieiro do Soutelo.

Hoje há tradução para tudo isto, que são velharias de província. As minhas irmãs, que se especializaram em 'feng shui' e acompanham com curiosidade os relatos das religiões mais populares (um vasto contimente que vai do budismo aos orixás) e os horóscopos das revistas, têm nomes mais adequados aos novos tempos. Frequentemente falam de 'energias', como uma espécie de correntes invisíveis semelhantes às descargas eléctricas das trovoadas ou às brisas dos pinhais de Vila Praia de Âncora. A ideia é simpática, mas trata-se sempre de coisas invisíveis.

Eu, que até aos anos oitenta supunha que o Tarot era um jogo de cartas semelhante ao brídge, sinto especial simpatia por essas aventuras do espírito – mas retenho a ironia do velho Doutor Homem, meu pai, que era um prodígio de racionalidade. A questão é que as histórias de fantasmas da literatura inglesa – que ele lia abundantemente – não são as histórias de fantasmas do Minho. E as histórias de fantasmas do Minho não têm o requinte das 'energias espirituais' detectadas pelas minhas irmãs. Vejo, em tudo isso, a "necessidade das coisas invisíveis", uma espécie de conforto para os males da existência ou para as vidas incompletas. Por preguiça, nunca me aventurei nesses caminhos. A minha economia de meios não me permitiu ir além da espiritualidade dos pinhais de Moledo, recortados sobre a espuma das ondas. Lá, ao longe, a montanha escura de Santa Tecla, com as suas cruzes celtas, é o meu grande apelo do invisível. Isso deve-se, suponho, ao nevoeiro das manhãs do Minho, que não deixa ver grande coisa para lá da Ínsua.

in Domingo - Correio da Manhã - 6 Julho 2008