sábado, dezembro 22, 2007

Mudar a sociedade

De entre as campanhas absurdas para que tentou, em vão, mobilizar-se ao longo da sua vida, o velho Doutor Homem, meu pai, pensou seriamente em decretar a independência das ilhas do rio Minho – que são três ou quatro – por motivos completamente irrisórios e destinados ao humor da família. Isso aconteceu em pleno Verão, e toda a gente pensou que as temperaturas iam demasiado elevadas. Pessoalmente, creio que o meu pai admitia que Espanha ia pedir a internacionalização da ilha dos Amores, ou da Boega, e a declaração de independência poderia impedir a Galiza de vir apanhar as trutas e a lampreia de que se acreditava um defensor.

Ele não assistiu às campanhas pela liberalização do haxixe ou pelo casamento dos homossexuais, mas era um homem do futuro, o que significava que era vastíssima a sua capacidade de tolerar fosse o que fosse. Ciente de que o género humano – e a diversidade das espécies – não era apenas exemplar nas também com uma tendência superlativa para o absurdo, ele acreditava que nos cabia tolerar os delírios dos outros. Os limites eram definidos pelas portas da velha casa de onde os Clérigos eram uma gigantesca sombra a cobrir a cidade, ou pelos muros do casarão familiar de Ponte de Lima, onde o espectro dos Homem de antanho, bigodudos e barbados, emparelhava com o retrato do príncipe proscrito, o senhor D. Miguel.

Ele imaginava que o seu escritório confortável, cheio de livros e de canetas antigas, com móveis de mogno escuro e de sofás mandados fazer – à medida – num artesão da Póvoa de Lanhoso, era uma espécie de gabinete de curiosidades importado directamente de Oxford, onde imaginava que teria vivido uma existência anterior. Em Londres, onde a sua juventude se deslumbrou, encontrou marxistas poderosos e da alta finança e pôde conversar com anarquistas servidos por criados circunspectos e tão sombrios como se tivesse sido educados num colégio real. Aprendeu, portanto, que não há coisas tão absurdas como imaginamos na nossa pobre moderação de provincianos que vão às festas de N. S. da Agonia, em Viana.

Como dizia o grande clássico, nada de humano lhe era estranho. Se bem que as suas leituras nunca tivessem passado por Terêncio, ele sabia que era necessário ser tolerante desde que não se interrompesse o curso da natureza ou o horário dos almoços de domingo, uma instituição que hoje se despreze inexplicavelmente. As noites de brídge à sexta-feira poderiam estar incluídas no cardápio de bens inamovíveis, mas ele não o admitiria.
A minha sobrinha, pelo contrário, acha que, pelo simples facto de existirem leis, a sociedade se rege por elas. Portanto, mudando as leis mudar-se-ia a sociedade. Tentei objectar com aquela insensatez que os velhos adquirem por desleixo, declarando que não só a sociedade raramente muda (embora se altere gravemente, com consequências imprevisíveis) como, além disso, ninguém sabe bem o que é a sociedade.

Este atrevimento, o de negar dois séculos de sociologia e os últimos cem anos de ciência política, poderia sair-me caro há alguns anos. Felizmente, a tolerância da juventude para com um velho despropositado e contemporâneo da descoberta da penicilina, tem crescido com generosidade.

A eleitora do Bloco de Esquerda limitou-se a sorrir à ideia, imune à minha inimputabilidade ideológica, convencida – como está –, por anos e anos de positivismo, de que o futuro é radioso e de que “a sociedade” marchará para a felicidade a passos largos, desde que os guias espirituais e políticos providenciem leis e regulamentos gerais. Tentei explicar que as pessoas se regem muito mais pelo costume e pelo interesse do que pelos “princípios” – uma vez que o género humano é tendencialmente preguiçoso, egoísta e pouco generoso. Portanto, o melhor seria que a pouco e pouco se fossem introduzindo “mudanças particulares” em vez de afrontar, radicalmente, a má índole das pessoas. Maria Luísa mencionou, então, uma longa lista de “melhorias sociais”, que iam desde a taxa ecológica para os sacos de plástico ao casamento dos homossexuais e à necessidade de quebrar o sigilo bancário. Sacos plásticos não uso. Mas o casamento dos homossexuais não me aflige; sou um celibatário sem remorso e acho que toda a gente tem direito à sua dose de infelicidade.

in Revista Notícias Sábado – 22 Dezembro 2007

sábado, dezembro 15, 2007

Vida simples

De entre os territórios onde os Homem estabeleceram relações, África não consta como uma grande praça. Tirando o Tio Henrique (que era militar, do ramo de engenharia, mas que viria a ser distinguido domesticamente como um razoável instrumentista de oboé), uns primos que se fixaram no planalto central angolano, e um ramo transmontano da família que partiu para Lourenço Marques com funções administrativas, os Homem não foram “muito africanos”.

Havia, na biblioteca do Tio Alberto, uma secção africanista cheia de crónicas e de monografias quer sobre a colonização, quer sobre as aventuras “do sertão”. A expressão é erradíssima mas, entre paredes, certamente por influência de algum familiar bandeirante, tudo o que ficava a mais de cem quilómetros do Atlântico ou do Índico, em continente africano, era considerado “sertão”. Para efeitos práticos, quando se considerava o “mapa cor-de-rosa, havia um vastíssimo “sertão” entre Angola e Moçambique. Capelo e Ivens eram “sertanistas”. O doutor Livingstone tinha chegado ao “coração do sertão”. O longínquo Niassa, esse oásis oceânico no meio de África, era um lago “no sertão”.

Não sei como a designação deu frutos na família, geralmente tão dada a preciosismos e a anátemas sobre corruptelas na gramática, mas suponho que o erro diz bem da pouca importância que o continente teve na história da família, essencialmente minhota – e essencialmente provinciana. África, com as suas selvas e savanas, os seus vales profundos, os seus exploradores destemidos, os seus régulos e comerciantes, e a sua “glória do Império”, era um território inóspito e incompreendido. Quando os primos de Lourenço Marques regressaram à metrópole (e às suas montanhas de Trás-os-Montes), eram apenas ilustres desconhecidos que tinham “vindo do estrangeiro”.

Como profeticamente tinha anunciado o velho Doutor Homem, meu pai, por alturas dos acontecimentos de Goa, o desenlace estava já escrito quando D. Pedro “nos livrou do Brasil”. A frase era dita com um certo ressentimento. Ele guardava queixas sombrias contra a falta de bravura e de grandeza de figuras do passado, e invocava o abandono do arquipélago de Tristão da Cunha como um exemplo de pobreza espiritual. No fundo, habituado a lidar com os heróis das suas biografias inglesas, aqueles rochedos inóspitos deveriam ser conservados com mais razões do que os pântanos da Guiné: eram um archote solitário erguido nos mares do Sul, o emblema de uma casta de navegadores que atravessara as tempestades em busca de fama e de um lugar na história. Em seu entender, a abundância colonial, no tempo do ouro e da pimenta, criou uma classe de parasitas e de preguiçosos que se dedicava a escrever sonetos em vez de plantar hortas e indústrias, e de se aplicar na ciência bancária. A esta distância, compreendo bem a indignação.
Os portugueses não se dão bem com a vida simples. Acham-lhe uma brutal “falta de interesse”, como repetem as minhas irmãs quando passam mais de dois dias e duas noites no Inverno de Moledo ou cercadas pela melancolia outonal de Ponte de Lima.

Durante muito tempo pensei que se tratava, apenas, de uma ânsia pelas coisas que fervilham, de atracção pela vida moderna ou, até, de vontade de trabalhar e de amor pelas coisas produtivas. Erro fatal. Os portugueses acham-se, simplesmente, com “falta de interesse”. Não se bastam a si próprios. Sentar um português numa biblioteca rodeado de livros, numa varanda rodeado de paisagem, numa paisagem rodeado de natureza – é condená-lo ao cativeiro. Se o português vê uma estrada atravessando as montanhas, quer transformá-la em auto-estrada. Se vê uma pequena e pacata vila do Minho, como Âncora ou Cerveira, quer enchê-la de actividade. Se tem um jardim no meio de uma cidade, quer preenchê-lo de barraquinhas de feira e de desfiles. Não lhes bastam nem a beleza das coisas nem a tranquilidade dos elementos (por oposição às coisas que não o são); é preciso contornar essa “falta de interesse”. Segundo as minhas irmãs, o Verão de Moledo, com os seus rituais perpétuos (praia, café, caminhadas, crepúsculos), pode ser muito saudável – mas não tem “interesse”. Só a simples menção de Tristão da Cunha iria causar-lhes um tédio mortal. Elas acham, com toda a razão, que eu ainda não me dei conta de que o mundo é uma coisa muito diferente.

in Revista Notícias Sábado – 15 Dezembro 2007

sábado, dezembro 08, 2007

O historiador caseiro

Não posso, todos os anos, evocar a Espanha. Na semana passada, os dois ou três leitores que me acompanham acharam que esqueci a Espanha a propósito do 1.º de Dezembro; o facto é que já escrevi sobre a data e sobre a impressão que o assun­to nos fazia, mas não é saudável repetir todos os anos o mesmo cardápio patriótico, louvando (pela cartilha comum) D. João IV e os conjurados, sobretudo sabendo o que se sabe nas entre­linhas da História Pátria.

Esquecer a Espanha, de resto, é impossível. Ela está ali ao lado. Os passeios das manhãs de sábado, até ao café da praia, mostram-me que a ínsua permanece inamovível, traçando uma bissectriz até às colinas mais elevadas de Santa Tecla, do outro lado do rio e da foz. Estas coisas sempre estiveram ali. Conservámos esse azimute como uma garantia da preservação da espécie: enquanto víssemos Santa Tecla, estávamos salvos e não tinham mudado, por conveniência, os pontos cardeais.

Nos idos de 1975, quando a haste mais ultramontana da família se amedrontava com as etapas da revolução, aquela montanha quase árida sempre nos protegeu; éramos reaccionários sem importância nem estatuto e ninguém nos perseguia. Diferentemente dos que fugiram para o Brasil ou se esconderam noutros recantos do mapa, os Homem eram gente que passava bem naquela escala de discrição que proporcionava o conforto dos timoratos ou, pelo menos, dos absentistas. Talvez, se fosse viva, a tia Benedita encarasse a hipótese de marchar para Santiago de Compostela com o argumento de que ficava mais perto das relíquias do santo e a salvo de qualquer ameaça mais contundente. Vigo seria uma hipótese, mas a cidade era bastante cara para um exílio provinciano, mesmo figurativo. De modo que ficámos entregues aos muros cobertos de musgo do casarão de Ponte de Lima, onde o espírito conspirativo nunca ultrapassou o primarismo que nos envergonha desde que o senhor D. Miguel deixou Cascais na direcção do desterro.

Poderíamos ter sido heróis. Esta suposição, que o velho doutor Homem, meu pai, atribuía ao meu bisavô paterno, era o sinal de que tinha expirado o nosso prazo de validade e de que raramente nos considerávamos deste mundo. Os heróis de hoje e de ontem eram feitos de outra matéria, e o heroísmo dificilmente se contentava em evocar príncipes que tinham malbaratado o seu capital de erros. Portanto, periodicamente e durante muito tempo, o heroísmo caseiro limitava-se a conservar em bom estado uma cópia manuscrita do discurso de José Acúrcio das Neves, de 1828, sobre a legitimidade do Príncipe para ocupar o trono, e - na mesma data - considerar que houve demasiadas coincidências: a independência do Brasil deixou D. Pedro desocupado, Metternich era um fraco, os Habsburgos ambiciosos, e Wellington um infeliz. O velho doutor Homem considerava que estas minudências eram coisas passadas mas ficava-nos bem um mínimo de respeito pelos derrotados (argumentando que isso ajudava na formação do carácter, uma vez que a vida não era feita de vitórias).

Ele tinha uma sincera e profunda simpatia pelos deserdados da glória, mas nunca pisava o risco com o argumento de que tinha uma família para alimentar.
Mas havia o recurso a picardias. Em disputa contra um panfletário dos Fenianos, campeão de bilhar no Ateneu do Porto, que escrevera erradamente o cognome do senhor D. Miguel, o tio Alberto não hesitou em mencionar que D. Maria da Glória, feita rainha aos 15 anos, não passava de uma prima da rainha Vitória (o que, para ele, na sua devas­sidão, era insulto bastante) e que o autor do Hino da Carta ("Proclamemos Portugueses/ a Divinal Constituição...") merecia ser açoitado por má métrica.

A minha sobrinha Maria Luísa acha que isto são histórias da Carochinha. De certa maneira, tem razão. Hoje ninguém sabe quem era a rainha Vitória e quase toda a gente ignora que D. Pedro foi o autor do Hino da Carta. Escrever sobre o pas­sado obriga-nos a correr riscos fatais. O primeiro dever de um cidadão, mal saiba ler, escrever e contar, devia ser o de enten­der em que país vive e que parte do passado pode ser menos lembrada. Em cada família devia existir um historiador.

in Revista Notícias Sábado – 8 Dezembro 2007

sábado, dezembro 01, 2007

O assunto carnal

O período do Natal arrasta consigo, como também acontece com o Verão, os chamados “livros da moda”. As minhas irmãs transformaram-se em bibliófilas e críticas literárias, mencionando – ao almoço de domingo – títulos de romances que lhes ocuparão os serões de Inverno. A culpa é do frio. De visita novamente, a jovem namorada holandesa do meu sobrinho Pedro lembrou que na sua infância frísia se lia bastante enquanto o Inverno rondava a ilha de Ameland. A minha sobrinha Maria Luísa quis saber como era a bibliografia local, coisa que atribuo menos à curiosidade do que à tentação de examinar a biblioteca de Isabelle, uma espécie de provação que a bióloga holandesa terá de sofrer até ser admitida no círculo familiar.

As minhas irmãs reprovam a diligência. Elas acham que os livros são matéria pessoal, um pouco como a roupa interior e o passaporte, com a diferença de que a biblioteca se renova de acordo com as “tendências gerais” e o passaporte é uma obrigação social. Elas discutem um certo romance da moda, uma saga familiar que rebusca momentos da nossa história – e acham que se lê bem, o que significa que não têm de ir ao dicionário ou reler duas vezes o mesmo capítulo. É uma virtude duvidosa. Um livro que se lê bem não acrescenta quase nada à nossa preguiça natural. Mencionei, à mesa, que uma das lições mais devassas sobre o passatempo da leitura vem no livro da Dra. Filomena Mónica, “Bilhete de Identidade”, quando recorda as tardes que passou, bebericando brandy e lendo apaixonadamente os clássicos. É uma cena digna de “Madame Bovary”, de “A Mulher de Trinta Anos” e, simultaneamente, de “O Monte dos Vendavais”. Em começando a enumerar livros, o disparate é livre.

Mesmo em família, considera-se que o livro da Dra. Filomena Mónica “ultrapassou um nadinha os limites”, o que creio dever-se ao facto de uma senhora contar, no livro, episódios que deveria guardar para si (a minha sobrinha Maria Luísa acha que me fica bem, enquanto eminência reaccionária do clã, invocar o tema). Ora, acontece que as passagens mais enternecedoras do seu livro não têm a ver com o assunto carnal, propriamente dito, mas sim com os grandes momentos de solidão que somos levados a imaginar – e que nos emprestam um perfume de ilusão e de nostalgia, misturando Flaubert e brandy, leitura e contemplação.

O velho Doutor Homem, meu pai, aconselhava a que se avaliasse um “romance da moda” pela forma como tratava o “assunto carnal”, precisamente, aquele momento em que o escritor defrontava os seus fantasmas mais íntimos. Ele pensava que o género humano, para proteger-se, devia evitar minudências de mau-gosto e de vulgaridade, arrepiando caminho antes de chegar ao momento da verdade; por esse motivo recitava os versos mais lúbricos de Junqueiro (dois ou três) ou de Leitão da Silva (era o modo familiar – e ressentido, reconheço – como se designava Garrett), divertindo-nos com a entoação e as escorregadelas de estilo, apenas para nos provar que amor, sexo, paixão e outros assuntos muito populares, frequentemente provocam riso se forem levados a sério. O exemplo maior eram os versos fatais de Junqueiro, que ele repetia em circunstâncias inadequadas: “Eu não te tenho amor simplesmente. A paixão / Em mim não é amor; filha, é adoração!” O meu avô (que privou episodicamente com o bardo) não aprovava a pilhéria, que ele atribuía ao miguelismo inconsequente dos Homem.

As minhas irmãs, que são senhoras de hoje e viajam bastante, não se chocam com vulgaridades e confessaram que “o assunto carnal” aparecia algumas vezes ao longo do livro, mas – anotaram – como uma espécie de adereço, de advérbio, destinado a “apimentar” a história, que é ligeiramente aborrecida. Limitam-se a considerar que é um tempero.

O Tio Álvaro, o bibliófilo solteirão de São Pedro dos Arcos, possuía uma interessante colecção da chamada “literatura vitoriana” em encadernações sóbrias e respeitáveis que encobriam aquelas obras carregadas de luxúria, que, imodestamente, classificava como “raridades”. Ele sabia que o tempero temperava, desde que viesse a propósito – e que os livros da moda eram apenas colecções desirmanadas de especiarias.

in Revista Notícias Sábado – 1 Dezembro 2007