sábado, junho 30, 2007

Heróis sem interesse

A esquerda, a avaliar pela curiosidade da minha sobrinha em relação a estas crónicas, sente mais ternura pelas velharias do século XIX do que pelos democratas baptizados depois dos anos cinquenta. Compreende-se o desconchavo, e deve haver uma razão para isso: somos inofensivos, viemos de outro tempo, do além-túmulo, onde já não há munições para o combate e onde nos livrámos de pedreiros-livres e de salazaristas cheios de reumatismo.

Já contei ao leitor que coube à minha sobrinha Maria Luísa, que vota no Bloco de Esquerda, levar o retrato do senhor Dom Miguel a retocar e reparar em Braga. O velho Doutor Homem, meu pai, que sobreviveu ainda largos meses à democracia, nunca deixou que o retirássemos da parede do fundo do corredor na velha casa de Ponte de Lima, com o argumento de que ninguém reconheceria o príncipe (que deixara de ser ameaçador há muito) e de que a Tia Benedita já cá não estava para novenas em sua memória.

Restos de honorabilidade, é o que me parece. A minha sobrinha escutou na sua adolescência as várias histórias de heróis que ombreavam com o Remexido, e acha que o algarvio José Joaquim de Sousa Reis (que seria fuzilado à traição pelos liberais da ordem nova) merecia uma telenovela, como os brasileiros do sertão. Os tempos não vão para isso: os heróis de hoje já não são salteadores de estrada nem lutam contra os ventos da História.

Que no Brasil possam fazer romances sobre António Conselheiro, uma espécie de herói miguelista de Canudos que indispôs os republicanos do hemisfério Sul (e que produziu “Os Sertões” de Euclydes da Cunha) – é uma coisa. Mas Portugal é um território diminuto para heróis discutíveis, que devem ser economizados. Gostamos muito de ter certezas absolutas, um mal que erigiu muitas forcas de Norte a Sul. Camilo, que conheceu José do Telhado e escreveu sobre ele, conheceu alguns desses desvalidos; na época em que era coleccionador de curiosidades históricas, li também o livro de Rafael Augusto de Sousa sobre o salteador que foi degredado para Angola, além de umas memórias sobre a sua vida africana. Mas a minha sobrinha não sabia que também havia bandoleiros românticos dentro das quatro paredes da pátria. Para ela, foras-da-lei como o José do Telhado, são um emblema dos derrotados. Há um halo de vitória no desembarque dos liberais na Praia dos Ladrões (só depois transformada em Mindelo) – mas a matéria romântica, como insisti na crónica anterior, está ligada ao mundo dos derrotados. É isso que nos salva, a nós, os Homem de outras eras, que não discutimos a construção do novo aeroporto, porque – simplesmente –não nos será necessário.

Convivo com o passado sem remorso. Convivo com a História sem lembrar os pecados de outrora. Há uma parte do mundo que recordo com saudade, mas sei que nada disso regressa. Historiador da família, assim me quiseram por vezes, mas falhei: a minha família é um emaranhado de recordações desencontradas. Há ainda, pelos cantos, primos que não aceitam a Concessão de Évoramonte e não passam por Cascais (onde o príncipe teria embarcado para o exílio) sem murmurar contra o usurpador. São heróis sem bandeira, silenciosos e ignorados. Meia-dúzia de memórias sem importância são o que me resta da minha consciência política.

Há muitos anos, quando regressei do Brasil, vi que esse mundo tinha terminado. Eu tinha passado quase quatro meses no Rio de Janeiro a conselho e determinação de Dona Ester, minha mãe. Ela tinha convencido o velho Doutor Homem, meu pai, a enviar-me à Guanabara para curar um desgosto de amor. Um mundo de beleza e de novidade tinha atraiçoado todos os compromissos da minha memória. Era um mundo que me tinha tornado cosmopolita em poucas semanas, obrigando-me a reconhecer que o meu pobre Minho não era um bastião contra a infelicidade.

Regressei mudado mas conformado. Eu sabia que outro mundo existia para lá da barra da Foz (já o soubera antes, quando o velho Doutor Homem nos mostrara a Europa do seu tempo), mas conhecia as minhas raízes. Estava agarrado a elas como uma mancha de musgo que não abandona o tronco do carvalho no meio da floresta. Eu era uma prova de que o musgo e o carvalho tinham existido.

in Revista Notícias Sábado – 30 Junho 2007

sábado, junho 23, 2007

O nosso miguelismo

Escrevo à mão, tenho tinteiro e a caneta é uma ‘Parker’ que já cruzou os destinos de três gerações. Mesmo assim, a família surpreende-se quando lê estas crónicas e descobre que, por detrás do funâmbulo que conhecem, há um escândalo em perspectiva. Desta vez, uma das minhas irmãs protestou a propósito de uma crónica em que menciono as opções políticas da família: entre o “ultramontanismo” e o “cartismo”.

Verdadeiramente, nunca houve ultramontanos em Ponte de Lima tirando fases da existência da Tia Benedita, quando lhe parecia que os sobrinhos e netos andavam tentados pelo demónio. Como o demónio era uma categoria moral e não uma personagem substantiva, o seu ultramontanismo era tido na conta de um pequeno delírio das nossas províncias – as que desconfiavam da República como antes tinham execrado Passos Manuel, José Estêvão e os Cabrais.

A única vantagem do ultramontanismo era, rigorosamente, taxinómina: tudo o que lhe era estranho cabia no campo do inimigo. Tamanha simplicidade era comovente e simplificadora, ainda que injusta. Se não soubéssemos da generosidade fria mas autêntica da Tia Benedita, julgaríamos que a senhora estaria predestinada a vir para a rua dar vivas à Vilafrancada – mas “o inimigo” era-lhe profundamente necessário como um tónus para os males de espírito, evitando o ressentimento. Em boa verdade, era uma das condições admitidas para a sua íntima felicidade.

A família foi pouco cartista, mesmo assim. Por conveniência, mas sem ambição, tinha – digamos – os seus espiões. À medida que os ‘revolucionários’ se transformavam em ‘reformistas’, e que os ‘reformistas’ se mudavam ‘regeneradores’ e, depois, em ‘conservadores’, não havendo já ‘radicais’, os Homem repousaram e puderam voltar a olhar, com discreta melancolia, para o retrato do Senhor D. Miguel, estacionado no casarão de Ponte de Lima.

O mundo, ordinariamente (como concluiu o meu bisavô, o último dos nossos miguelistas de raiz), gira sempre para o mesmo lado. Munidos desta certeza, nem o meu avô nem o velho Doutor Homem, meu pai, se preocuparam mais com o assunto, decretando que as velhas histórias políticas da família podiam ser, definitivamente, arrumadas – e o nosso nome reabilitado para os tempos modernos.

Era mentira. Também era tranquilizador, mas era mentira. Quando se chegava a vias de facto, ou seja, àquele momento em que se corria o risco de entrar no campo da apostasia, a lembrança do vintismo, do “Eusébio Macário”, dos barões de fresca data e dos pobres versos de Leitão da Silva (nome por que Garrett era conhecido intramuros), foi sempre morigeradora e teve o condão de nos lembrar o nosso pecado político original. Ou mortal, no fm de contas, se tivermos em conta que hoje toda a gente é democrática. Nós, lá no fundo, continuávamos a ser reaccionários.

Felizmente, o velho Doutor Homem, meu pai, lembrou-nos sempre que a ironia era a mais mortífera das armas desses tempos e dos que haviam de vir. Era essa a razão por que podíamos ouvi-lo rir sonoramente quando calhou, num certo Verão, ler Júlio Dinis. Ele ria de Tomé da Póvoa, o honrado agricultor dos “Fidalgos da Casa Mourisca” – e do frade Januário, o personagem estomacal que representava o reaccionarismo ultramontano. Ele achava graça à literatura panfletária e conhecia de cor trechos de José Acúrcio das Neves, que comparou os revolucionários de 1820 a personagens das aventuras de Gulliver.

Esses tempos foram felizes para os Homem. Tonificados pela derrota, um bálsamo para a sua tentação permanente para a petulância, dedicaram-se à família, aos negócios, à vida académica e ao epicurismo que alegrou a vida dos celibatários da tribo, que foram um nadinha picarescos. Camilo havia de achar-lhes alguma graça, a esses Homem de outros tempos, sitiados pela modernidade, cómicos, desadaptados, com uma elegância digna das Cortes de Lamego, se elas tivessem existido.

O nosso miguelismo não é actual. É desses tempos. Só uma grande falta de sentido de oportunidade nos levou a manter o retrato do Senhor D. Miguel até hoje, sob o olhar divertido, respeitoso, irreverente, comovido e derrotado de várias gerações de Homem, inclusive dos que, hoje, votam no Bloco de Esquerda. Na próxima semana, terei de ouvir os protestos da minha sobrinha, mal o jornal chegue a Braga.

in Revista Notícias Sábado – 23 Junho 2007

sábado, junho 16, 2007

Os fantasmas do Verão

Todos os anos, nesta época, o velho doutor Homem, meu pai, suspirava por ostras. Era um queixume surdo e inclemente, que Portugal ouviu durante muito tempo. As ostras não eram propriamente um luxo na orla marítima da Galiza, e a recordação das suas viagens à Corunha ou a Vigo trazia-lhe aquela memória salgada arrancada ao mar frio deste lado da Península. A sua excentricidade chegou a levá-lo a Ribadeo, na fronteira entre a Galiza e o velho reino das Astúrias, porque lhe disseram que Don Álvaro Cunqueiro prezava especialmente essas ostras. Não quis deixar o crédito, inteiro e solitário, nas mãos do académico - e partiu para aquelas falésias, na compa­nhia do então director do 'Progreso de Lugo', que tinha famí­lia perto de Melgaço e era um teórico da culinária galega, para além de ter nascido nos arredores de Mondonedo, a terra de Cunqueiro.

O meu pai insistia que o escritor, por ter nascido no vale, não podia degustar inteiramente as ostras daquelas praias, contaminadas, ao longe, pelo Cantábrico. Era conversa fiada. Mondonedo, famosa pelas suas trutas e salmões, mas também por ser terra "de pão, boas águas e latim", como dizia Cunqueiro, era uma porta aberta na direcção do mar. O jornalista do 'Lugo' (que tinha uma paixão pela ópera desde que escutara Manolo Cortés no teatro de Ribadeo, durante uma récita oferecida pêlos Ruisefiores dei Eo) visitou por duas vezes a casa de Ponte de Lima, durante o Verão, mas nunca trouxe ostras. Vinha ver o ciumen­to, como ele dizia, achando graça à perseguição que o velho doutor Homem, meu pai, fazia às enumerações gastronómicas do autor da 'Escola de Mencineiros'.

Tudo isto ocupava uma parte do Verão, a mais cómi­ca e literária. Nessa altura, os areais de Moledo (con­quistados para a família, definitivamente, só a partir dos anos setenta, quando a "época balnear da ínsua" era uma excentricidade) ainda não constituíam uma dependência da Academia Sueca e não se liam 'best-sellers' à beira do mar.

As leituras de Verão disputavam terreno com os chamados "amores de Verão", que nasciam para fazer respeitar a tradição romântica do lugar. Os meus sobrinhos querem, com alguma frequência, saber se naquela altura já havia escândalos amoro­sos. Se confirmo, logo se abre uma brecha para considerar que as velhas gerações conheciam abundantemente o pecado e não têm razões para lamentar os infortú­nios da actualidade.

Ora, o Verão é um território do pecado. A tia Benedita sabia-o bem – e tratava-nos, de Junho a Setembro, como excomunga­dos, exigindo que Ponte de Lima escapas­se à frivolidade balnear que arrastávamos connosco. Um dos meus irmãos conven­ceu-me, nessa altura, a alugar um barco para exibir durante o Verão em tranquilos cruzeiros que subiam até Caminha e Cerveira, rondando a ilha da Boega (protegida pela Guarda Fiscal, não fosse transformar-se em albergue de contrabando vindo de La Guardia); como se esperava, o assunto foi muito comentado – passeios pelo rio não requeriam muita sapiência mas eram um espectáculo ofere­cido no palco do crepúsculo mais belo das redondezas. A vida de marinheiro durou três ou quatro épocas, durante as quais se festejou bastante e eu mantive o meu propósito de celibatário (o meu irmão casou no Verão seguinte), muito apoiado pêlos dois ramos da família, o ultramontano e o cartista. O primeiro tinha na matriarca, a tia Benedita, uma voz de comando à altura - achando que "as mulheres de hoje" eram um caminho acelerado para a infelicidade. O segundo, liderado pelo tio Alberto, achava que o mundo não acabava num matri­mónio celebrado nas vésperas da Senhora da Agonia.

Dei razão a ambos, se bem que os amores do tio Alberto fossem mais interessantes. A sua casa de S. Pedro de Arcos era o santuário de um aventureiro, como já escrevi em tempos. A esta distância, relembro as suas memórias como se fossem minhas. De certa maneira, ele é o testemunho mais interessante desses anos, regressando sempre (de Londres, da Suíça ou do Cáspio) às tentações da sua biblioteca como São Jerónimo lutando com o pecado. A minha sobrinha, por exemplo, vai partir na próxima sema­na para a Tailândia. Mas também ela sabe que Verão não é Verão sem os fantasmas abrigados sob o toldo familiar da praia de Moledo, alugado à época.

in Revista Notícias Sábado – 16 Junho 2007

sábado, junho 09, 2007

Eu, pedagogo

A adolescência do meu tempo, e na minha família, era atrevida como a de hoje, mas menos infeliz. Dona Ester, minha mãe, não deixava. A infância tinha sido percorrida por heróis que tinham conquistado a felicidade sempre com um sorriso. Os heróis dos meus sobrinhos-bisnetos, ao que vejo pelo ruído das televisões ao domingo de manhã, quando entram naquele coma regular uma ou duas horas antes de almoço, ouvem todo o género de sons e as imagens não são melhores. Não conheço um único dos heróis de hoje e suponho, até, que não existem. Como me informaram naqueles longínquos anos de setenta, o fim dos heróis era uma das conquistas da democracia – iríamos assistir à socialização das histórias para adormecer, à libertação dos erros ortográficos (a boa ortografia era uma desinência das classes privilegiadas) e ao fim das injustiças sociais. Não me surpreendi, mas reconheço que o meu tempo tinha heróis das histórias de infância e adolescência, havia erros ortográficos e tínhamos graves injustiças sociais. Passados trinta anos, as injustiças sociais e os erros ortográficos mantêm-se mas os heróis das histórias infantis foram definitivamente abolidos; informei-me bastante sobre isso, perguntando às mães e avós da família. O assunto não me afecta pessoalmente, mas reenvia-me aos livros pios do meu passado, cheios de exemplos morais que atormentavam a nossa natural queda para a maldade e de personagens que se esforçavam para não serem banidos na altura da distribuição de recompensas.

O leitor sabe que não sou a pessoa mais indicada para fornecer exemplos de moralidade e de alto “desempenho social”, como agora se diz. Periodicamente sou assaltado por tempestades reaccionárias que, no entanto, não me indispõem gravemente; limito-me a considerar que o mundo não me pertence e que os abismos de hoje são, de facto, piores do que os de ontem. Nisto, divirjo bastante dos meus irmãos e irmãs, ou da maior parte deles, que são optimistas por natureza e acham que um velho de oitenta anos se deveria recolher a horas, tratar o reumatismo e dar passeios ao longo dos pinhais para respirar o cheiro das resinas. Eles acham que a internet, os jogos electrónicos e as séries de televisão japonesas não contribuem para o atrofiamento do cérebro e que, pelo contrário, como os tempos mudaram, eu devo abster-me de falar de velharias que não se entendem hoje em dia. O que nós não sabíamos no nosso tempo, sabem as crianças de hoje antes da emancipação civil.

Tenho para mim que não se trata de uma espantosa vantagem. Aos catorze anos, eu economizava dinheiro para livros ou para mais tarde comprar um fato de três peças. Fui criado no meio de livros e de ‘dandys’, o meu avô acreditava – como os burgueses do Porto e os cartistas que tinham escapado à sanha radical contemporânea dos seus pais e avós – que a cultura (bem como o conhecimento da astronomia, da filatelia ou dos princípios gerais da contabilidade, por exemplo) trazia alguma felicidade ou, pelo menos, assuntos para conversas com sujeito, predicado e complemento directo. O velho Doutor Homem, meu pai, educado pelos mestres da ironia, pelo cosmopolitismo da época e pela necessidade de alimentar uma família numerosa, simplesmente não acreditava na felicidade, mas tinha alguma consideração por quem se esforçava.

A minha sobrinha Maria Luísa, que vai contribui para alimentar a minha inútil vaidade, explica-me que as crianças de dez anos já sabem manejar máquinas de calcular e visitam regularmente a internet para “navegar”, expressão que me comoveu bastante. Os navegadores do meu tempo eram os intrépidos heróis que tinham dobrado o Bojador, estabelecido comércio com os sarracenos ou os chineses e enfrentado o medo do mar. Hoje navega-se em casa porque o mundo está cheio de doenças preocupantes, que não se resumem ao tétano ou à escarlatina. Sentados diante do computador, os meus sobrinhos-bisnetos sabem mais sobre as avarias do mundo do que eu alguma vez soube acerca das minudências do direito bancário ou das contracurvas da serra de Arga, que conheci durante toda a vida. No meu tempo, a asma era uma tragédia. Hoje, como depreendo, é a falta de “rede” para a internet.

in Revista Notícias Sábado – 9 Junho 2007

sábado, junho 02, 2007

A mulher de trinta anos

Eu lembro-me mal da mulher de trinta anos. Foi há muito tempo. Mesmo o retrato de Júlia d’Aiglemont, a jovem marquesa que foi personagem de Balzac, está desfocado na minha memória, e até reprimido – o livro, “A Mulher de Trinta Anos”, é ligeiramente medíocre, mas diz quase tudo a quem se contenta com pouco. Há, inevitavelmente, a distância da época e da fisiologia: a mulher de trinta anos de Balzac, segundo entendo, vive hoje até aos cinquenta sem perder a sua marca romanesca e o fascínio devasso que a minha geração lhe emprestava, ainda que nunca se tivesse lido o livro. Adultério, maus casamentos, maridos traídos, sofrimentos verdadeiros – a panorâmica é demasiado vulgar e, convenhamos, superlativamente francesa ou apenas provocada pelo bonapartismo.

Depois de dobrar a meta dos oitenta, um velho permite-se todo o género de imoralidade, que lhe é consentida porque – justamente – não é vista senão como distracção. Elas tiveram sempre má fama, as “balzaquianas”, arrastando consigo acusações poucas vezes provadas de adultério e outras torpezas. A história de Balzac havia de ser melhor tratada por Flaubert (Emma Bovary respira bravamente, e sofre muito mais), que a contagiou com a ironia que magoava os seus personagens, se não contarmos com a acidez de outros. Percebo pouco de literatura mas tenho memória: as paixões de juventude são irrisórias e contentam-se com um período de esquecimento, de euforia e de glória. Só mais tarde valorizamos a aprendizagem ou a desgraça que maculou a juventude.

Dona Ester, minha mãe, que era severa e anti-romântica, livrou-me desse sofrimento; só depois dos trinta anos compreendi que tinha sido salvo do Purgatório. Descobri, ao longo dos anos, mais de meio século, que a idade é um peso de que nos livramos à medida que atravessamos a tortura dos calendários.

A minha sobrinha acha que, na crónica da semana passada, me referi a ela como “balzaquiana”, ao mencionar a sua qualidade de “mulher de trinta anos”. De certa maneira, sim. Há, nas mulheres maduras e da chamada “meia-idade”, todo o género de tentações. Os “atractivos irresistíveis” de que falava Balzac têm menos a ver com a sua sexualidade do que com o fascínio pela idade madura e pelos sulcos deixados pelo pecado, o que não é exactamente a mesma coisa. Tentar explicar isto a uma mulher “de trinta anos” (além do pudor, também a delicadeza me impede de mencionar a idade) não é fácil; digamos que se trata de explicar a serenidade de Montaigne durante um baile de fox-trot.

Ela pensa, na sua generosidade, que me interesso pelo assunto quando apenas me limito a imaginar. Os canalhas, como Balzac e como Eça, têm razão sem querer. Também eles, à sua maneira, se limitam a imaginar como seria um mundo em que triunfassem sobre Júlia d’Aiglemont, sobre Emma Bovary ou, muito prosaicamente, sobre a senhora condessa de Gouvarinho. Mas o mundo mudou bastante e de maneira radical, o que me leva de novo ao livro de Balzac. Para ele, a mulher de trinta anos (modelo, na época, de mulher madura) seria muito conveniente para os ardores de um homem substancialmente mais novo; ora, justamente, a mulher madura é um ideal para os homens de todas as idades.

Eu não devia escrever sobre estes assuntos, arriscando-me a que, durante semanas, a família olhe para o velho Matusalém de Moledo como um fenómeno que conseguiu escapar ao filtro da idade e da decência. O velho Doutor Homem, meu pai, tinha fama de admirar – à distância – a imoralidade do mundo. Ele admirava alguns pantomineiros e personagens de histórias burlescas. Creio que, até nisso, praticava uma pequena vingança contra o dr. Salazar, a quem acusava de quase todos os males que magoavam o país, e que, certamente, se sentiria fragilizado diante do desplante e da infinita sabedoria de uma senhora balzaquiana.

Nos seus momentos radicais, a minha sobrinha Maria Luísa (que vota esporadicamente – porque nem sempre vota – no Bloco de Esquerda) lembra-me que o dr. Salazar também era um celibatário, como eu. Nessas alturas, limito-me a sorrir e a recordar. Ela julga, então, que noutras épocas fui um fauno percorrendo os bosques.

in Revista Notícias Sábado – 2 Junho 2007