sábado, julho 29, 2006

O romance de uma vida

Aconteceu num destes sábados de Verão, disponíveis para a sesta. Os velhos não dormem a sesta, mas apreciam a sesta dos outros. Ao acordar da sua, recostada numa poltrona que ficará na varanda até terminar os seus dias de existência confortável, a minha sobrinha declarou achar que eu devia escrever um romance.

Esta ideia de que um romance se escreve quando se tem uma vida para contar parece justa e agradável à vista, mas, na verdade, os grandes romances entretêm-se mais com a vida dos outros do que com a dos próprios autores. Eu não saberia por onde começar e seria frequentemente assaltado por vários dos meus complexos cristãos acerca dos sentimentos que se devem ter sobre o mundo – e sobre os outros. E o romance ficaria estragado. Praticamente, sou um moralista, que é o que menos convém a um romancista. Fui habituado a ler Camilo e o bruxo de Seide é o meu modelo de escritor, criticável, cheio de deficiências de carácter, de invejas, de ressentimentos e de maus sentimentos. Tê-lo-ia de boa vontade à minha mesa, gostaria de convidá-lo. Mas isso não me basta. Sou, de facto, um botânico experimental e amador, um coleccionador de hibiscos; a arte do romance exige mais ressentimento do que o meu, e mais desejo de vingança, e mais conhecimento do mundo. Além de um temperamento trágico que nunca consegui reter.

O velho Doutor Homem, meu pai, tinha pelo romance um desprezo discreto e morigerado. Ele atribuía isso ao facto de, por distracção, se ter fixado na palavra “gentleman” no título de “The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman”, quando passeava o seu ócio numa livraria de Londres. O meu pai, que tinha lido o “Quixote” e se compenetrara da importância de “Pantagruel”, ficou saciado para a vida inteira ao ler “Tristram Shandy”, como se não precisasse de ler outro livro. Partilhei do seu entusiasmo como se se tratasse de uma Bíblia. Na verdade, li-o toda a vida. E lendo-o durante toda a vida, li nele todos os livros que comenta.

A minha sobrinha acha que eu devia escrever um romance por ter coisas para contar. Não basta: nem tudo é matéria de romance. Eu perder-me-ia entre episódios galantes e recordações que revelariam uma vida desinteressante e vazia das emoções extraordinárias que o leitor procura para alegrar a sua existência ou para dispor na sua memória como exemplo. E, ao virar de um capítulo (se eu escrevesse o primeiro, sequer), estaria reduzido às lembranças vagas que têm acompanhado estas crónicas. O romancista, suponho eu, tem de possui aquele ar arguto e irónico de Lawrence Sterne sem que nele se detecte o bacilo da tuberculose ou a tortura de uma ideia caminhando entre o labirinto de manuscritos, além de garantir uma dose bastante invulnerável de misantropia. Se os Homem se tornaram, com a idade, especialistas numa amável e discreta misantropia, não lhes sobrou talento para se dedicarem às artes.

A nossa cidade é o velho Porto que já não existe. A nossa província é o Minho vetusto, garrido, explodindo no Verão em romarias onde raramente fomos encontrados. A nossa biblioteca é um misto de teimosias do velho Doutor Homem, meu pai, e da luta contra a minha ignorância e a minha preguiça.

A minha sobrinha, que vive e trabalha em Braga, uma cidade de romance durante os tempos de Camilo, não ignora as minhas objecções mas atribui-lhes um carácter que não têm; ela supõe que se trata de modéstia, qualidade de que nenhum Homem alguma vez pôde vangloriar-se. Mesmo no recato das reuniões familiares, os Homem julgaram-se sempre o centro do mundo. De geração para geração, mantivemos a decoração da casa de Ponte de Lima e conservámos hábitos sem explicação que julgo servirem apenas para reunir a maledicência familiar em torno da mesa de domingo. “Há para aí tanto escritor sem nada para contar”, observa ela, tentando comover-me ou elogiar-me. Defeito de juventude: ela não conhece o poder extraordinário da preguiça, que, não sendo fonte de virtudes teologais, é um vício deste Matusalém minhoto.

in Revista Notícias Sábado – 29 Julho 2006

sábado, julho 22, 2006

Um sabor do passado

Quando a União Indiana decretou o fim da presença por­tuguesa nos territórios daquela parte do planisfério, o velho Doutor Homem, meu pai, não se limitou a mostrar-se magoado. Ouvindo a rádio, lendo os jornais, desdobrando sobre a mesa da sala de jan­tar os mapas que mostrariam a pequena catástrofe do império, a família achou – à primeira vista – que estava iminente o fim do mundo. No entanto, ainda era cedo e não foi dessa vez que a catástrofe atingiu o nível do apocalipse.

No conjunto das hecatombes familiares, geralmente circunscritas ao pequeno universo da época (quando ainda não "tínhamos" chegado à Lua), a perda das províncias da índia foi apenas a con­firmação de todo o pessimismo habitual desde que o senhor D. João VI regressou do Brasil em 1821. Por isso, o velho causídico limitou-se a dizer que tudo estava já previsto desde que, atravessando o longínquo Ipiranga (se é que foi assim), D. Pedro declarou encerrada a questão colonial por esses tempos – perder o Brasil significava, no fim de contas, perder apenas metade do mundo.

O império foi-nos sempre caro desde que Tristão da Cunha foi a Roma em representação ao Papa. Os luxos pagam-se e Portugal não podia ficar imune à inflação da História. Não se compreendia, aliás, que o doutor Salazar, com a sua teologia doméstica, a sua indumentária e a sua intuição sobre o funcionamento das contas públicas, não tenha entendido esse preço que a civilização vinha cobrar.

O velho doutor Homem, meu pai, compreendia, à medida que chegavam as notícias sobre a grandeza das cidades coloniais (Lourenço Marques, a pérola do Índico, a Beira, Nova Lisboa, Luanda), que a pátria estava a ser ultrapassada pelas suas coló­nias. Manuseando os princípios do direito bancário e lendo Disraeli (à parte ter sido visita do doutor Cunha Leal), o velho doutor Homem via nesse luxo africano, tão evidente quanto necessário, uma tentativa justa de vin­gar a pequenez da modesta metrópole europeia.

Poucas pessoas de família visitaram o império em África – o Brasil bastou-nos para deslumbramento e para jun­tar um pouco de lenda e de devassidão à riqueza do nosso tio pernambucano que veio retirar-se em Afife. Mas a vista das avenidas monumentais de Luanda e de Lourenço Marques (imagens que poupavam a vista de outras modéstias), bem como as histórias de alguma grandeza de vida, mostrava que havia uma diferença entre a virtuosa "aura mediocritas" do ditador e os costumes do vasto império.

A falar verdade, recuando no tempo, Portugal era um mundo orde­nado e silencioso, a quem causavam estranheza a inclemência dos trópicos e os suores africanos. Em chegando a África, suponho que a alma portuguesa continuava a ser portuguesa, mas, de facto, deixava de ser lusitana.

Nós, que éramos conservadores, que mantínhamos velhos hábitos (e fazíamos disso questão) e que guardávamos os retratos dos antepassados, nunca compreendemos com grandeza e desprendi­mento a sugestão de Benjamin Disraeli, retirada de um dos seus famosos discursos nos Comuns, segundo a qual uma colónia não deixa de ser colónia só pelo simples facto de se ter tornado inde­pendente. Não o vimos na época; não poderíamos tê-lo visto depois, quando os militares, que tomaram o país em 1926, regres­saram ao poder em 1974.

Nessa época, em 1961, eu aprendera o 'fox trot' (que já não se dançava) e queria ir a Paris. Nem uma coisa nem outra foram espe­cialmente difíceis. A perda de Goa, de Damão e de Diu custou mais um pouco ao orgulho doméstico, mas era disfarçável diante de Paris, do antiquado 'fox trot'. No final desse ano, o ano em que o russo Gagarin entrou na história do espaço e em que faleceu a tia Benedita, o velho doutor Homem considerava que seria uma inuti­lidade enviar para a morte os quatro mil soldados portugueses estacionados no Indostão. Era um princípio de humanidade.

Ao almoço de domingo, houve caril. Uma senhora de Vila Praia de Âncora vem cozinhá-lo de vez em quando, a pedido de dona Elaine. A sua família, que tem raízes em Goa, possui a sua própria receita, que se perde no tempo e no paladar. A melancolia do império, às vezes, dilui-se perto do estômago – se Camilo não tivesse lembrado que o coração e a cabeça lhe estão também ligados.

in Revista Notícias Sábado – 22 Julho 2006

sábado, julho 15, 2006

De Eça, de quem somos filhos

O velho Doutor Homem, meu pai, tinha arroubos de cos­mopolita. Isso acontecia quando lhe ocorria citar Eça de Queirós ou lembrar-se do mestre. "Quer a gente um ministro? Não há um ministro. Quer-se um economista? Não há um economista." Assim falava o conde de Gouvarinho sobre o reino. O retrato do País, pela pena de Eça, emprestava-nos uma aura de luxo que não tínhamos. Recomendo ao leitor que retome, um destes dias, as descrições do Ramalhete, que sempre me impressionaram pelo rigor poético com que Eça desenhou a decoração do velho palácio dos Maias, cheia de cretones, repes, quebra-luzes, mesas de jogo, poltronas, antecâmaras, escadas interiores, alcovas de banho, alabastros e porcelanas, Rubens imaginários. O retrato convinha ao romance, convinha aos Maias, convinha até ao País, pobretanas e deslocado – mas era literatura a mais.

Romântico do mais puro (ao contrário do que a escola ensinou aos meus sobrinhos), imagens de Versalhes em Lisboa, as descrições de 'Os Maias' foram-me sempre muito convenientes. Quando, no final de uma vida dedicada ao direito bancário, à preguiça, à leitura e a algumas partes inconfessáveis das minhas memórias, deci­di mudar-me para o eremitério de Moledo, calhou-me reler 'Os Maias'. Do casarão de Benfica aos salões da quinta de Santa Olávia, em Resende, ao Ramalhete e à casa da senhora condes­sa de Gouvarinho, havia bastantes indicações sobre decoração e mobiliário. Mas poucas se adequavam a uma casa com vida, correntes de ar, crianças, livros e tempo que passa. Junto das obras do autor de 'A Relíquia adormecera o livro de um padre aveirense – cujo nome me não ocorre agora, mas o livro existia - que se dedicara durante algum tempo a coligir notas sobre os "exageros de Eça".

Os argumentos sobre os "exageros de Eça" poderiam ter sido subscritos pelo inevitável conde de Gouvarinho. Durante algum tempo pensei que seria bom escre­ver-se a história de 'Os Maias' do ponto de vista das personagens secundárias e, sobretudo, das suas personagens maltratadas. Tenho uma certa ternura pelas personagens criticáveis e criticadas - casadas com mulheres infiéis, com problemas familiares, desgostos de moral, corrompidas pela política e pela má fama, de calvas luzidias, sem talento literário. Compreendo que, de algu­ma maneira, os exageros de Eça lhe foram necessários para que nós vivêssemos o seu tempo.

O velho doutor Homem, meu pai, não assistiu à derradeira ascensão da ignorância na nossa democracia, mas reconhece­ria que se tratava de um preço a pagar. Não estaria certamente na disposição de pagar ou de negociar esse preço, mas o mundo ("excepto a China, tudo passa", como reconheceria João da Ega) não apresente novidades nesse quadrante; é vulgar dizer-se que "os Dâmasos de Salcede" ou "os Gouvarinhos" ou os "Acácios" estão ainda vivos e ocupando o seu lugar à nossa volta. Com essa probabilidade, o mais interessante é que não saibamos reconhecer que eles têm "o seu lugar à nossa volta". Portugal e todos nós, somos, afinal, filhos de Eça. Sendo certo que o mundo não se repele nem se revolve em novidades, a galeria de personagens de Eça de Queirós é eterna porque ele escreveu sobre generalidades que são eternas: a grosseria, a falta de vida na sua vastíssima Lisboa, o enriquecimento das burguesias e a ascensão da ignorância.

Os Homem nunca se importunaram com nenhuma dessas coisas: nem com os retratos de Eça nem com a democracia, que arrasta consigo, à maneira de uma companhia inseparável, a ignorância e a incomodidade com o passado. Camilo falou do assunto em 'Eusébio Macário' e na 'Brasileira de Prazins' como um visionário que desenhou os contornos dessa malvada podri­dão. O verdadeiro mundo português da época era esse, mais do que o de Eça. Mais o de Júlio Dinis do que o de Eça. Eça era um romântico que escrevia com pinças e com a delicadeza de um artista no seu laboratório. Camilo, como eu aprenderia mais tarde, tarde de mais, era um dos últimos desesperados moder­nos da nossa literatura. Às vezes procuro nas estantes esses retratos portugueses da nossa vida. Acabo a resmungar, perdi­do entre lombadas velhas, queimadas pela luz e devoradas pela poeira.

in Revista Notícias Sábado – 15 Julho 2006

sábado, julho 08, 2006

A Pátria, eufórica

A falar verdade, os Homem nunca se recompuseram do golpe que foi terem de apreciar a bandeira portuguesa. Para os padrões actuais, empurrados pelo desvario do futebol, gostamos moderadamente da Pátria (ou gostámos -falo por mim e pelo velho doutor Homem, meu pai), apreciamos os seus símbolos, mas temos gosto. Gosto, ou seja, uma ideia do que é bom e mal para os olhos, os ouvidos ou as papilas, por exemplo. Quanto aos ouvidos, o hino é razoável e com uma história de ocasião, muito exagerada nos manuais de História, como se a Monarquia quisesse vender o País a Inglaterra e só os republicanos o quisessem salvar. Em matéria de olhos, a ideia da bandeira portuguesa é muito descomposta e, a bem do bom senso, não é muito agradável de ver. Se nunca a desrespeitámos, também não a elogiámos vezes suficientes para que se soubesse que a achávamos apresentável. Não é. Os países sérios deviam ter bandeiras discretas que inspi­rassem sentimentos nobres e, sobretudo, valores essenciais.

Seja como for, a bandeira leva-me ao assunto: o futebol é um fenó­meno que me escapa, mas a culpa é exclusivamente minha. Rodeado de futebol por todos os lados, limitei-me a acompanhar a evolução da selecção nacional e, quando saio de casa, para atravessar as manhãs de Verão de Moledo e comprar os jornais do costume, a apreciar o renascimento periódico do patriotismo. Nós, que sempre fomos patriotas, estamos rodeados de patrio­tas superlativos dispostos a tudo para erguer a bandeira. É uma nova forma de patriotismo, reconheço. Pergunto-me o que acon­teceria com as multidões que festejam cada vitória da selecção de futebol se estivessem colocadas diante do dilema de com­preender ou de combater a invasão de Goa, Damão e Diu pelas tropas indianas. O estado de euforia levaria a absurdos incom­patíveis com o bom senso requerido - mas vestiria a farda dourada do patriotismo com as suas quinas e castelos.

Infelizmente, os ventos da História arrasam os castelos de areia do patrio­tismo e transformam-no numa coisa obsoleta e arruinada. Quando o doutor Salazar ordenou às tropas que resistis­sem a todo o custo aos indianos, o mundo tinha já levado uma volta. Ficou bem, no retrato, a reacção honrosa - mas o resto do mundo "compreendia" a derrocada das potências coloniais e aguardava, por motivos estratégicos, que o meu país de então se desfizesse das possessões africanas e orientais. Por motivos que não vêm a esta crónica, a década de cinquenta foi decisiva para todos nós e antecipou os sinais do que viriam a ser os anos absurdos de sessenta. O velho doutor Homem, meu pai, encerrado o capítulo do assalto a Berlim no termo da Guerra, dobrou as folhas do 'Daily Telegraph' (recebido com mais de uma semana de atraso na Baixa do Porto) e disse a frase que na altura não ousei compreender: "Vamos, então, cuidar da porta de entrada." A sua relação com o ditador foi uma questão familiar permanente e duradoura, transformada em obsessão com o correr dos anos. Ele acreditava que o doutor Salazar, com o avançar da idade, poderia começar a não regular totalmente bem - e que o País estaria condenado a ficar caquético. Portanto, quanto mais cedo se livrasse dos fantasmas e dos sonhos de grandeza, mais rapidamente se vacinaria contra os males do século, entre os quais estava certamente o comunismo.

Esta maneira de pensar era tão absurda como qualquer outra, mas tinha um pouco a ver com a misantropia dos Homem; desde que os não preocupassem demasiado, a vida seguiria o seu caminho. Não seguiu, como se sabe. Hoje, somos uma velha família que se reúne aos domingos e durante o Verão para assinalar o indesmentível facto de que os anos passam mesmo que a selecção de futebol ganhe campeonatos ou seja humilhada pela derrota. Continuamos a pensar que estamos no centro do mundo (pelo menos do nosso, certamente), mesmo que entre os meus sobrinhos haja votantes no Bloco de Esquerda ou casamentos sem casamento. Limito-me a compreender tudo isso, e até a euforia das hordas futebolísticas - é um patriotismo da festa e não da abnegação. Trata-se da ale­gria de pertencer aos vencedores e por isso é menos questionável. Se as hordas fossem colocadas diante da inevitabilidade da perda de Goa e Diu, como depois de Angola e de Moçambique, até onde se ergueriam as nossas bandeiras? É esse o estranho valor do patriotismo, o de poder reagir solenemente diante das derrotas.

in Revista Notícias Sábado – 8 Julho 2006

sábado, julho 01, 2006

A gabardina do Brasil

Juscelino Kubitschek de Oliveira poderia ter sido o meu ídolo se eu não tivesse atravessado a adolescência com a sensação de pertencer a outra década, anterior. Cheguei ao Brasil em Julho de 1957, creio que numa manhã resfriada. O Rio de Janeiro haveria de pertencer-me durante dois meses e meio, durante os quais nada fiz de público que merecesse menção posterior tirando jantares regulares com os correspondentes locais do escritório do velho doutor Homem, meu pai, já eles herdeiros ou, por assim dizer, continuadores das relações que existiam com o meu avô Homem, administrador de propriedades no Douro e no Minho. Uma vasta rede familiar estava encarregada de me receber na então capital brasileira (a nova capital seria inaugurada apenas em 1960, no meio dos sertões), servindo-me abundantemente a sua generosidade e hospitalidade.

O velho doutor Homem, meu pai, foi levar-me e despedir-se de mim a Lisboa. Tirando uma estada irregular no Estoril, por indicação (e, no fundo, por imposição) da minha mãe, poucas vezes me tinha ausentado do Porto sozinho. Houve, naquela despedida, uma cumplicidade natural – no fundo eu ia ao Brasil, o que significava não apenas repetir a viagem de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, mas também retomar os passos do tio Augusto, que só uns anos depois regressaria do Pernambuco para os pinhais de Afife. Apenas depois de derradeiras recomendações sobre alojamento, recursos financeiros e alguma decência me pareceu ter escutado um “diverte-te” em surdina – mas eu estava já de costas segurando no braço uma gabardina tão inútil na altura como hoje, mas que ainda conservo por motivos sentimentais.

Interpreto aquela recomendação final do velho doutor Homem, meu pai, como uma manifestação de pudor entre pai e filho, já de costas voltadas um para o outro. Passados cinquenta anos sobre essa viagem, praticamente, recordo aquele instante em que o clima moderado do Inverno da Guanabara me topou desprevenido na Copacabana de então, festiva, cheia de actrizes americanas e de orquestras nos hotéis, vivendo o esplendor das suas calçadas. Foram, portanto, dois meses decisivos na minha vida – dedicados à elegância (vestia-se bem no Rio de Janeiro de então), ao teatro (que era bom), às companhias de ocasião e ao estabelecimento de relações cordiais do escritório familiar com os nossos correspondentes locais.

Inopinadamente, como acontece com um rapaz de trinta anos largamente curado de um antigo desgosto de amor, acreditei enamorar-me de novo. Atribuí isso ao clima, à distância de Portugal e, naturalmente, à beleza de uma jovem com quem visitei os restaurantes da moda e que me ensinou, sem saber, a apreciar a leveza da vida. A passagem do tempo dilui essa impressão de época, como os aromas do Jardim Botânico ou da maresia de Copacabana – mas nunca desfez a evocação dessa beleza de outrora, muito diferente das convenções matrimoniais que me estariam destinadas no Portugal governado pelo doutor Salazar. Respirei momentos de felicidade nesse Brasil de então, o Brasil de Juscelino Kubitschek. Talvez por isso lhe tenha guardado sempre alguma ternura. Quando o antigo presidente morreu, de acidente de automóvel, depois de hostilizado pela esquerda e pela direita da época, pensei que uma parte do Brasil desaparecera também. Sem saber, tinha razão a sete mil quilómetros de distância, sentado a uma mesa de A Brasileira, na baixa do Porto, lendo “O Primeiro de Janeiro”.

Finalmente, sobre o Brasil – o leitor pensará que fui, outrora, um romântico. Todos fomos. Não fazemos nada de realmente novo desde há séculos. Nem quando evocamos as memórias de juventude, aquilo que foi turbulento ou que revela a primeira doçura da maturidade. Todos fomos românticos e acreditámos no que os nossos viam, pensando que isso era verdadeiro. Só a idade nos empresta o talento que nos permite distinguir as sombras projectadas pela realidade daquilo que é escuridão total.
Ao sair do meu hotel, na zona do Flamengo, depois de mandar descer as malas, reparei que não tinha usado uma única vez a gabardina, que ficara pendurada a um canto. Não chovera. Não a vestira. Não a vesti mais, nunca mais. E nunca mais voltei ao Brasil.

in Revista Notícias Sábado – 1 Julho 2006