sábado, junho 24, 2006

Férias no Brasil

Estamos agora na temporada do Brasil. Os Homem, que não foram frequentadores assíduos, beneficiaram largamente com a sua existência – e existe actualmente um ramo da família que não dispensa a sua temporada brasileira, certamente que já não nos engenhos de açúcar, numa fazenda do Pernambuco ou num pequeno chalé da Guanabara, mas sim nas praias que vêm nos folhetos de viagens.

O turismo de hoje reduz-se a duas viagens: a ida e a volta. Pelo meio há um período de alguns dias dedicado a duas tarefas essenciais – ou o estipêndio de energias que existem em excesso, em alguma parte do corpo; ou a tendência para a inanição preferencialmente absoluta. Uma e outra actividade são tentativas de imitar os ricos de outros tempos, que ora se dedicavam à ociosidade, ora à chamada diversão. A vida poupou-me a esse martírio, convencendo-me a manter uma reserva do pior dos hábitos, a preguiça e, por extensão, uma certa misantropia, racional mas inofensiva.

O velho doutor Homem, meu pai, atormentado pela moral, condenava o desperdício e, por isso, as nossas viagens familiares eram sempre antecedidas de algumas lições de geografia geral e de cartografia, cuidando que isso tornava as férias mais úteis à humanidade. Reconheço o esforço mas, como era o mais velho dos irmãos, sempre me pareceu um propósito desnecessário, embora cometido com boas intenções: a humanidade dispensou os nossos conhecimentos gerais sobre maneiras à mesa e monumentos nacionais, e todos nós vimos que era inútil, para a mesma humanidade, a existência de uma horda de provincianos portuenses que conheciam de cor a orografia da Península, a história da sucessão nos vários tronos europeus, o panorama histórico geral do Mediterrâneo ou, mais prosaicamente, algumas expressões idiomáticas que poderiam ser aplicadas em circunstâncias de decoro social.

Nessa altura – refiro-me aos anos cinquenta – o Brasil era longe demais, como notámos quando um dos nossos tios regressou do Brasil para se instalar perto de Afife, numa quinta que comprou com dinheiro vivo depois de se desfazer de todos os bens que o comércio geral do Pernambuco lhe proporcionara durante algumas décadas de labor e, acredito, devassidão tropical. A princípio estranhámos apenas a avareza, o sotaque e o cardápio geral das grandes refeições de família (o feijão preto e as farinhas locais eram para nós mistérios a desvendar). As suas ideias políticas confinaram-se, durante anos, à constatação de que “isto agora é uma República”, que funcionava como um lamento de cada vez que tinha o seu contabilista à mesa. Com o tempo, ouvi-o queixar-se – com aquela nostalgia das coisas impossíveis – de não poder voltar à fazenda do Recife ou às passeatas a cavalo diante do Forte Oranje. A meu ver, depois de eu próprio ter experimentado os meus dois meses, quase três, de delícias brasileiras, creio que lhe faltava mais do que o verde bucólico pernambucano, com colinas de cana-de-açúcar e as cálidas praias do Atlântico Sul.

Sendo hospitaleiro, bom anfitrião e tendo ganho fama de generoso pelo Natal e na Páscoa, o nosso tio nunca deixou de ser visto pela família como um excêntrico de que se podia desconfiar com alguma regularidade. Acredito que é uma tradição: os “brasileiros” de Camilo nunca tiveram boa fama nem na literatura nem no Minho – a inveja cercou-os, e às suas casas falsamente sumptuosas, compradas a velhas família falidas ou construídas por arquitectos que só hoje são apreciados. Esse barroco arquitectónico dos “brasileiros” de Camilo (que nunca se livrou do fantasma de Pinheiro Alves, a quem ficou com o relógio e a esposa) espalhou-se como uma praga pelo Porto e arredores, por todo o Entre-Douro-e-Minho, mas era a prova respeitável de uma conquista realizada nas longínquas terras do sertão e do comércio geral da antiga colónia: a da riqueza pelas próprias mãos, contra o calor dos trópicos, os mosquitos, a soberba portuguesa que atravessou o Atlântico com D. João V, e, certamente, a memória da penúria.

Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, regressou do Rio de Janeiro na condição de remediada. Ocasionalmente, quando passava diante desses solares e casarões pontilhados de azulejos e de camélias escuras, detectei nela alguma nostalgia desse tempo em que se enriquecia no Brasil. Também ela queria ter vivido noutro século. Mas não tinha razão, como contarei na próxima semana, recordando a minha viagem ao Brasil.

In Revista Notícias Sábado – 24 Junho 2006

sábado, junho 17, 2006

O livro da Natureza

Para que servem os livros, amontoados e desequilibrados? Entre mim e eles, nestas tardes de calor, fechadas as portadas de madeira da casa de Moledo, não há diálogo, não há – como se diz agora – interacção. Eu limito-me a estar deste lado, diante deles, olhando-os como uma estampa ou como um mapa de um velho atlas desactualizado.

Tenho, pelos velhos atlas, é preciso dizer, uma ternura especial, embora me esforce por actualizar as edições dos três que existem na biblioteca; as mudanças de fronteiras, alterações de nomes, ou simples trocas de soberania são sempre importantes. Há cerca de trinta, ao todo, entre actualizações e reimpressões – o mundo nunca foi, portanto, um problema para os Homem. Às vezes abro um ou outro e recordo como foi o traçado dos países, como evoluíram as suas designações, como se mudaram as cores dos estados federados e como alguns deles se tornaram independentes – e como continua exacta, imutável, perfeita, a localização das pequenas ilhas que formam o arquipélago de Tristão da Cunha, esse mistério da geografia do Atlântico Sul e dos nossos descobrimentos. O primeiro vice-rei da Índia portuguesa, que antecedeu o primo Afonso de Albuquerque no seu cargo, ficou pois perpetuado nas várias edições de atlas de todas as línguas: Tristão da Cunha continuará pelos séculos adiante como essa mancha no meio do mar profundo lembrando que há quinhentos anos, há exactamente quinhentos anos, em 1506, aquelas rochas foram visitadas por homens cujos netos, bisnetos e tetranetos depois se desinteressaram pelo facto. Na verdade, a data não foi assinalada e compreendo a perturbação que isso pudesse causar nos arquivos do velho império, habituado a glórias avulsas, repentinas e destinadas a inventários de banalidades.

Sinto diante de Tristão da Cunha a mesma angústia que me toma quando olho para os livros – há sempre um deles, abandonado há anos, que me pede atenção. Aproximo-me deles para recordar uma página, a data em que foi comprado numa livraria, um autor ignorado ou relegado para a penumbra. E pergunto-me: para que servem os livros, amontoados e desorganizados, inclinados uns sobre os outros, ou arrumados numa estante? Ora, eu sempre compreendi a vaidade do bibliotecário, mesmo a sua avareza – ela é um dos grandes segredos, não do mundo que teme a passagem do tempo, mas daquele que não tem quase nenhuma comunicação com o tempo e se limita a arquivar, a incluir uma nova ficha no catálogo de raridades acumuladas, a apreciar a forma como o tempo passa sobre os livros carregando-os de pó, de humidade e de comentários. A vaidade dos bibliotecários é uma das mais justificadas, e eu compreendo-a bem de cada vez que, sentado no sofá, assinalo distorções e enganos na organização das prateleiras, acasos na proximidade de autores, ou sinais de perfeição numa arrumação de há tempos.

A generalidade dos bons leitores, ou dos bons bibliotecários, gosta de mencionar as alegrias que eles – os livros – lhes proporcionaram, mas eu prefiro falar de felicidade, o que se compreende num velho de oitenta e seis anos que os folheia para confirmar que a curiosidade se sacia com pouco.

Na falta de literatura sobre Tristão da Cunha, dediquei-me a mais um volume do “Minho Pittoresco” para ler, na prosa de José Augusto Vieira, uma das explicações mais surpreendentes sobre a natureza do meu Minho. Repare o leitor: “Qualquer que seja o lado para que nos voltemos, a vista não alcança um horisonte que não seja fechado por montanhas, uma paysagem que não seja tufada de carvalheiras viçosas. Talvez que a abundancia d’esta especie florestal justifique as revoluções minhotas, que teem descido das alturas de Vieira resolvidas a varrer a cacete todas as oligarchias das terras baixas. A observação fica já agora como futuro elemento mesologico a determinar, quando se tenha em vista estabelecer o laço intimo, que liga a abundancia do carvalho cerquinho com o espírito revolucionário das populações, que lhe sentem o zoar da rama.”

Tamanho esforço de antropólogo apenas é permitido no “Minho Pittoresco”. Em redor de Moledo, nas encostas mais luminosas, existem carvalhos frondosos que resistem à avalanche de pinhais. Prefiro estes perto do mar – e os carvalhos no alto da serra, nas penedias, nas curvas dos montes. Mas os livros das bibliotecas podem organizar-se. Os da natureza estão apenas desorganizados.

in Revista Notícias Sábado – 17 Junho 2006

sábado, junho 10, 2006

A música que vai e volta

PABLO CASALS. Escrevo o nome do violoncelista catalão com certo receio. Era ele que tocava as suites de Bach que o velho doutor Homem, meu pai, mais costumava ouvir na sua sala do casarão de Ponte de Lima. Havia discos que o davam como Pablo Casais, e outros que o reconheciam como Pau Casais, mas atribuo isso ao nacionalismo de Barcelona mais do que a fidelidade ao próprio arco manejado por Casais.

Por princípio, uma tristeza muito profunda devia espalhar-se pelos corredores do casarão com a suite violoncelo n.º1, a BWV 1007. Recordo-a como um passeio pela eternidade, mas o leitor (e a leitora) não quer saber disso - aproxima-se o Verão, embora só no Verão a família assistisse à sua execução vezes sem fim, até que a doçura da tarde encontrasse o crepúsculo ou a primeira estrela da tarde. Mas, pelo contrário, muito pelo contrário, não era de tristeza que se tratava. Peço ao leitor que entenda: só um som como aquele, o Bach mais profundo e mais destituído de alegria, poderia ser escutado com o sorriso tranquilo do velho doutor Homem, meu pai.

O pátio estava cheio de crianças turbu­lentas, nesses primeiros anos da década de setenta - antes do 25 de Abril - quando o viúvo se sentava na biblioteca (havia uma sala transitoriamente assim denominada onde quer que ele passasse a sua quinzena anual de férias - mesmo que apenas se lesse a 'Flama' ou o 'Journal de Génève') e pedia a alguém para colocar o disco no vetustíssimo Philips. E desse pátio vinha o mais interessante contraste com a música de Bach - os gritos das crianças, o choro, as vozes das minhas irmãs chamando-as para a sesta ou a passagem de um cortejo de romaria. O ruído dessas intrusões raramente me incomodou. Ao velho doutor Homem, meu pai, haveria de parecer que Casais suportava tudo - ou o imenso e colossal Tibor Varga, esse outro violoncelista cujos discos vinham de Paris e que eram escutados como uma relíquia ou como se fosse literatura clandesti­na a entrar no tugúrio desarrumado e soturno de um esquerdista, rodeado de relíquias, de retratos e de folclore.

À sua maneira, nestas ocasiões, o velho advogado portuense portava-se como um deles - abrindo sozinho o embrulho de uma loja de discos parisiense, despertando de novo para esse cruel luxo da sua juven­tude, que foram as viagens pela Europa. Hoje, quando me aproximo da derradeira idade do meu pai, reconheço que essa música vinda dos séculos me tranquiliza como quase nada mais. Não recomendo que se ouça, mas eu ouço Johann Christoph Pachelbel como uma aventura do vento que vai e volta, que apenas volteia no ar como o calor do final da Primavera, estendendo a sua melancolia até aos pinhais em redor da casa e que descem para a praia de Moledo. Na verdade, os pinhais sempre desceram para a praia de Moledo, e essa é uma das suas vantagens: a da eternidade que se repete, a do som dessa música que vive afastando-se e aproximando-se sem necessidade de mudar tudo o resto.

A ideia de que as coisas são superlativas quando "mudam o mundo" é boa para espíritos irregulares e ciclotímicos, dese­josos de se meterem nas nossas leituras, na nossa música, no nosso destino. Eu passaria o Verão a escutar essa música, aquele Debussy perdido, o Bach da minha infância (aprendido com rigor), o Samuel Barber que me reconcilia - e o Jazz dos meus anos de ouro, quando se distinguia o clarinete do trompete (o de Coleman Hawkíngs, sobretudo, que tive o prazer de mostrar à minha sobrinha Maria Luísa para lhe provar que ainda havia salvação) e finalmente se pôde dizer que nem tudo era 'fox-trot'.

Mudar o mundo é uma tarefa muito aborrecida porque as pes­soas, em geral, gostam deste, com as suas imperfeições e com os seus momentos de felicidade. É, provavelmente, um sinal de que o mundo, em geral, também não aprecia o gesto. Ao ouvir o ruído dessas recordações, interrompendo a música, pressinto o problema das pessoas que nunca conseguiram con­ciliar as duas coisas: a música e o ruído que vem dos pátios. Elas querem o silêncio absoluto ou a música absoluta. Coisas impossíveis, como sabemos hoje, para bem da humanidade.

in Revista Notícias Sábado – 10 Junho 2006

sábado, junho 03, 2006

A vida dos outros

Nunca me interessou muito a polémica sobre as polainas do doutor Salazar, mas recordo o seu uso. O velho doutor Homem, meu pai, achava que devíamos prestar alguma atenção a questões de carácter mesmo que a vida privada dos outros não nos interes­sasse. Na verdade, lá no fundo, a vida privada dos outros interes­sa-nos bastante (a nossa está cheia de defeitos), se bem que algu­mas pessoas tivessem uma vida pública virtuosa - funcionários cumpridores, zelosos oficiais de repartições dos anos cinquenta, escrupulosos amanuenses e contabilistas, valorosos e diligentes empregados de balcão. Enfim, gente que nunca se distinguiu ver­dadeiramente naquilo que é hoje a vida pública, aquela soma de revelações desnecessárias sobre as suas minudências pessoais.

A "vida privada" de antigamente era justamente considerada priva­da porque se passava paredes dentro. As casas de família, é certo, albergavam segredos lamentáveis - mas ou tinham um Camilo à altura como relator (e o romance encarregava-se delas, vingativo e cheio de insinuações), ou limitavam-se a circular nas ruas da maledicência. A imprensa, pelo menos a que se lia à mesa do velho doutor Homem, meu pai, não transportava nas suas páginas informações sobre a improvável vida dos outros. Era uma vantagem sobre estes tempos.

Os Homem nem sempre prezaram a liberdade mas, desde que se habituaram a ela, aprenderam duas coisas. Primeiro, que ou há liberdade ou não há; segundo, que não vale a pena citar os mestres quando se trata de cercear a liberdade dos outros em nome da moral. Viver em liberdade, ou seja, aceitar também o escrutínio de estranhos, significa que quem vai à guerra dá e leva. A minha irmã mais nova, que lê as revistas de sociedade onde se expõem as vidas dos outros, mantém o princípio de que só se mostra a intimidade da família quando se está disponível para abdicar da própria intimidade. Quem a mostra uma vez, tem para sempre afixado esse retrato nas casas dos outros. Ela tem uma longa carreira de leitora da 'Hola' e con­hece o emaranhado de ramificações das realezas europeias e das famílias de actrizes e condessas espanholas, além das últimas doenças que afectam cantoras de flamenco, políticos adúl­teros e toureiros que ainda vão à Monumental de Madrid. Mas a sua duplicidade tem razão de ser: é humaníssimo que nos interessemos pela vida "dos outros", sobre­tudo quando "os outros" a expõem; mas, ai de nós!, expor a nossa vida (e os nossos pecados e retratos de família) significa sermos vistos por ainda mais gente, e certamente que essa gente é mais curiosa do que nós.

Os Homem, nisso, definiram sempre as suas regras com uma clareza meridiana — mas nunca exigiram que "os outros" as seguissem para benefício próprio. Há um preço a pagar quando se tem vida pública - pela simples razão de que, ao tê-la em excesso, abdicamos da vida privada; não parece existir salvação. O velho doutor Homem, meu pai, invejava a vida dos advogados que nunca tinham de se deslocar à barra dos tribunais e argumentar em público sobre a inocência de um consti­tuinte ou (bem vistas as coisas) sobre a perfídia de um negócio. Numa existência habituada a lidar com o bem e o mal em doses fre­quentemente ásperas, a palavra "vida pública" tinha um peso excessivo aos olhos da mentalidade democrática de hoje. Ele sabia que não podia jurar sobre a aflitiva inocência dos seus - porque eram humanos, como "os outros". Ou seja: estavam disponíveis para praticar todo o género de perfídias e de pequenos e grandes pecados. Essa era, também, a vantagem do seu cepticismo, sem­pre indisponível para aplaudir com entusiasmo, mas incapaz de ceder permanentemente à amargura.

A falar verdade, o velho doutor Homem, meu pai, admirava os outros. Admirava os outros sem reservas e sem limites, sobretudo os autores preferidos e os seus companheiros de brídge, mas o pudor impedia-o de exorbitar e de enumerar virtudes alheias - ele sabia que alguém se encar­regaria de mostrar o reverso de tanta virtude. A televisão e as revistas de sociedade (como as que minha irmã traz a fim de alegrar o cesto de leituras de Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo) não nos ensinam senão isso: ao mostrar o rosto, ele gasta-se. Mesmo a vaidade de um velho, como eu, é perigosa.

in Revista Notícias Sábado – 3 de Junho 2006